Estamos aqui para ter a really really really good time. A ver se nos lembramos disto mais vezes...
Lembranças de All the Things I Lost in the Flood, o espectáculo que Laurie Anderson deu em Lisboa.
Todas as coisas que perdi na enxurrada, em tradução livre do título do espectáculo que Laurie Anderson deu em Lisboa, All the Things I Lost in the Flood (e que por sua vez se baseia num livro dela com o mesmo nome: o espectáculo já não volta, mas o livro pode facilmente ser encomendado na net). Estava a vê-lo — e já me alongarei — e lembrei-me muitas vezes do encontro mais importante das últimas semanas, em que ainda não deixei de pensar todos os dias: um filme do realizador brasileiro Carlos Reichenbach (1945-2012), Alma Corsária, estreado em 1993. Nada em comum entre os dois “objectos”, nada. E no entanto, alguma coisa.
Reichenbach pertence a uma geração (ou uma facção duma geração) do cinema brasileiro que viveu caoticamente, em parte por temperamento em parte pelas circunstâncias (apanhou a ditadura aos 20 anos). Esse filme, um vulcão que com centro numa pastelaria de São Paulo sopra lava e magma em todas as direcções, foi feito numa altura em que Reichenbach tinhas boas razões para acreditar que se calhar não voltava a filmar — e então, com 48 anos, meteu tudo lá dentro, como num testamento precoce, a vida dele e as dos seus amigos, a história de uma geração que “privilegiava as sensações absolutas” em detrimento “da crença no futuro”. Foi assim que sobreviveram à ditadura, numa resistência hedonista (e portanto bastante anti-idealista), num presente permanente onde nunca havia futuro mas o passado se ia avolumando (como a tosse do protagonista, sintoma de doença e símbolo dum “excesso” que tem que ser expelido). Uma enxurrada, e tudo o que se perde nela. Para ficar talvez com o essencial: contaram na apresentação da sessão que Jairo Ferreira (1945-2003, critico e cineasta brasileiro, amigo de Reichenbach) acabou os seus dias voluntariamente desprovido de tudo “o que não importava”, com a exclusiva companhia de poemas de Ezra Pound e garrafas de whisky.
Laurie Anderson é mais zen, e o que ela nos conta, depois de ter perdido anos de trabalho quando a cave onde guardava objectos e instrumentos foi levada numa enxurrada literal, é como isso a fez perceber que as memórias das coisas substituem as coisas, que as “palavras” são melhores do que as “coisas”. Ter uma palavra para nomear uma coisa torna-se, não um mecanismo da memória, mas a memória ela própria. É assim que ela salva — também no contexto duma América política que deixou de reconhecer, e que só lhe merece um grito de raiva e horror, mas um grito mesmo, literalmente — e nos propõe que salvemos as coisas que se perdem na enxurrada. Quando as palavras de Lou Reed (com quem ela diz ter saudades de conversar), palavras cantadas numa gravação caseira à cappella, ecoam pela sala, o poder desta ideia fura-nos os centros emocionais: Lou estava ali, ouvimo-lo, vimo-lo a espreitar por trás do ecrã transformado em vidraça coberta por gotas de chuva. O ano passado, numa entrevista para este jornal, outro novaorquino, Abel Ferrara, contava que tinha trocado o catolicismo pelo budismo porque este não nos propunha que sofrêssemos agora para merecer, depois, outro mundo. Laurie despediu-se do palco de forma muito parecida: “só tenho uma certeza: não estamos aqui para sofrer, estamos aqui para ter ‘a really really really really [número indefinido de ‘reallys’] good time”. A ver se nos lembramos disto mais vezes.