A Via Crucis do “Brexit” está só a começar

O “Brexit” imaginário que foi vendido aos britânicos não era só, como se gabava Boris Johnson, o Reino Unido querer ao mesmo tempo ter um bolo e comê-lo.

A certa altura nas negociações para a declaração política do “Brexit” houve um comentador britânico que notou a vitória do Governo espanhol na questão de Gibraltar e se admirou pelo facto de o Governo grego ainda não ter tentado pedir de volta os mármores do Parténon que estão no Museu Britânico.

A palavra-chave, aqui, é “ainda”.

Neste momento, a aprovação do acordo de saída necessita, além do voto positivo do Parlamento Europeu e do Parlamento britânico, apenas de uma maioria qualificada entre os Estados-membros da União Europeia. Nesse sentido, o “veto” espanhol não era exatamente um veto — a Espanha não podia bloquear sozinha o acordo de saída do Reino Unido — e por isso se tornou ainda mais notável como vitória política. Espanha ganhou apenas o espaço necessário para que a questão de Gibraltar se torne, nos próximos anos, aquilo que a questão da Irlanda do Norte foi nos últimos: uma matéria para uma inevitável cedência britânica, caso o Governo de Londres queira um acordo.

E Londres precisa de um acordo, ou melhor, de vários.

Precisa deste acordo de agora, para a saída. E precisa de um próximo acordo que enquadre as relações futuras entre a UE e o Reino Unido. Nesse próximo acordo, aí sim, cada Estado-membro terá direito a veto. E é inevitável que os gregos voltem a pedir os mármores do Parténon e que os britânicos tenham de lhes dispensar a atenção que nunca lhes dignaram dar. E é inevitável que a Espanha queira reabrir o dossier de Gibraltar, tendo obtido este fim-de-semana o direito de o fazer em dois tabuleiros: no tabuleiro europeu, se necessário vetando o acordo das relações futuras como qualquer outro Estado-membro; e no tabuleiro bilateral, para onde a UE remeteu especificamente todas as questões relativas a Gibraltar, e que será tratado à parte do acordo geral para se resolver a contento de Espanha. Até Portugal terá também as suas exigências a fazer, nomeadamente no setor das pescas, onde há uma triangulação complicada: nós temos acesso às águas norueguesas porque os noruegueses têm acesso às águas da UE, incluindo as britânicas.

Para que a situação se mantenha, vai haver certamente uma negociação árdua na qual a peça decisiva será esta: os britânicos vendem para o resto da União Europeia 80% do peixe que pescam nas suas águas; para continuarem a ter acesso ao mercado único, alguma coisa terão de dar em troca. E assim sucessivamente, em setor após setor da economia. Daqui a muitos muitos anos já poderá o “Brexit” ter caído no esquecimento público e lá continuarão os negociadores de ambas as partes a queimar as pestanas em cima de dossiers de milhares de páginas.

O “Brexit” imaginário que foi vendido aos britânicos não era só, como se gabava Boris Johnson, o Reino Unido querer ao mesmo tempo ter um bolo e comê-lo. É querer também retirar os ovos que foram usados na confeção do bolo e recompô-los com casca e tudo, sem desfazer o bolo que se quer comer e continuar a ter.

Na raiz deste raciocínio impossível está, já o vimos, uma noção de soberania não faz qualquer sentido no século XXI, se é que alguma vez o fez. A soberania, hoje como antes, depende da relação que temos com a soberania dos outros, e o Reino Unido encontra-se agora perante 27 outros países que agregam as suas reivindicações — a Irlanda do Norte, Gibraltar, pescas e infindas outras coisas — em negociações conjuntas, nas quais sabem que do outro lado da mesa está um Reino Unido que tem uma escolha a fazer: com acordo, perde “apenas” 2% do seu PIB; sem acordo, perde 8% — e não como punição ao Reino Unido, mas como simples decorrência do que o Reino Unido fez a si mesmo, ou melhor: porque os políticos do Reino Unido fizeram isto ao seu povo em nome das suas carreiras políticas pessoais.

Que isto não tem de ser sempre assim prova um voto de ontem que passou despercebido no mundo: na Suíça — país que está habituado a referendos e os sabe fazer regularmente e com toda a informação disponível —, 66% dos eleitores rejeitaram ontem uma emenda constitucional que invalidava o direito internacional na ordem interna suíça, deixando assim de reconhecer as decisões de juízes internacionais. Os suíços, de cuja soberania e independência ninguém duvida, e que vivem a seu contento fora da UE, sabem porém que se toda a gente decidisse rejeitar o direito internacional isso significaria também que a própria Suíça não poderia fazer valer os seus direitos em disputas com outros países quando isso for necessário. A soberania num mundo interdependente parte deste reconhecimento simples.

Como o exemplo suíço demonstra, ver o “Brexit” por aquilo que ele é — uma diminuição de soberania cujas consequências ainda estão apenas agora a começar a revelar-se — não significa ser contra referendos nem instintivamente pró-UE. Significa ser-se objetivo e perceber que o Reino Unido tinha, sim, como tem ainda, alternativas fora da UE: sair com acordo ou sem ele. Só que uma alternativa era má e a outra é péssima.

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