Centenas pediram à Justiça que faça justiça às mulheres vítimas de violência

Marchas pela erradicação da violência contra as mulheres reuniram centenas em Lisboa, Porto e Viseu.

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Polícias juntaram-se à marcha num ano em que já morreram 24 mulheres às mãos dos companheiros ou análogos António Cotrim/LUSA

Centenas marcharam este domingo em Lisboa, apesar da chuva intensa, pelo fim da violência contra as mulheres, pela igualdade de género e por uma Justiça que não traduza nos acórdãos preconceitos que culpabilizam as vítimas pelos crimes que sofrem.

As críticas ao funcionamento da Justiça estiveram presentes na marcha, não só no discurso político, mas também nos que viveram a violência.

Muito próxima de uma participante que exibia um cartaz onde se lia 'Nas casas sem medos', Amélia Santos assistia a uma "performance" no Largo do Intendente, momentos antes do arranque da marcha em direcção ao Rossio, em que dois manifestantes se envolviam num emaranhado de um novelo que os prendia, vendo nela a metáfora perfeita para a perda que sofreu e para a Justiça em Portugal.

"É um amarro. É uma Justiça arcaica, de acórdãos vergonhosos. As mulheres não têm protecção, muito menos as crianças, que não têm estatuto de vítimas", disse à Lusa Amélia Santos, a avó que ficou com a guarda do neto, depois de, em 2014, a filha ter sido assassinada pelo companheiro, no culminar de uma história de violência que começou em 2010 e que deu pistas suficientes para que o desfecho se pudesse adivinhar e evitar.

A filha, Carla, separou-se do companheiro em 2010, que a sequestrou, maltratou, assim como ao filho de ambos, que na data tinha apenas 22 meses. O agressor esteve preso por uma noite apenas, lamentou Amélia Santos, e viu ser-lhe aplicada uma pena suspensa de um ano e meio de prisão e uma multa de 700 euros. Seguiram-se perseguições e ameaças, a toda a família, queixas da vítima à polícia e a morte do irmão - assassinado pelo companheiro de Carla - três meses antes da sua.

"A morte da minha filha foi uma morte anunciada", disse Amélia Santos, criticando o funcionamento da Justiça e justificando a sua presença na marcha com a sua perda, mas também com a morte de quase 500 mulheres em 10 anos, que tiveram como consequência quase mil crianças órfãs, para as quais lamenta a falta de apoio do Estado.

A marcha deste domingo pretendeu ser também uma chamada de atenção para as decisões dos tribunais que "ainda culpabilizam as vítimas e não responsabilizam os agressores", disse à Lusa Elisabete Brasil, presidente da União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR), uma das organizações promotoras da iniciativa, manifestando preocupação com a fundamentação dos acórdãos e aquilo que ela traduz.

"É isso que nos assusta, a forma como se fundamentam os acórdãos, que é um espelho de uma sociedade patriarcal, machista e sexista, de uma sociedade que ainda culpabiliza as vítimas", disse.

Sandra Cunha, do Bloco de Esquerda, desfilou ao lado da líder do partido, Catarina Martins, e destacou a importância de manifestações como a deste domingo para "denunciar a inércia dos tribunais" e os acórdãos que recentemente vieram a público, "legitimando a violência sobre as mulheres e que seguramente são só a ponta do icebergue".

"Estaremos sempre na rua e também onde se mudam as leis, no Parlamento, para fazer as alterações necessárias", disse Sandra Cunha, referindo ainda a importância da educação para a cidadania, nas escolas. É uma opinião partilhada pela presidente da UMAR que entende que o país precisa de "prevenção primária como ferramenta para alterar comportamentos e atitudes", algo que ainda não acontece "de forma consistente e permanente" nas escolas.

Luta é "uma exigência de todos"

Sobre o manifesto da marcha, que lembrava o avanço da extrema-direita em alguns países e as possíveis consequências sobre os direitos das mulheres, Elisabete Brasil lembra que "nenhum direito humano é perene" e que a luta pela sua manutenção "é uma exigência de todos", admitindo preocupação com o avanço do conservadorismo em países como o Brasil, defendendo ainda que é necessário continuar a assinalar o dia de hoje, que a nível mundial evoca a luta pelo fim da violência contra as mulheres, "pela vastidão e números brutais de violência".

O Governo esteve representado pelo ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, pela ministra da Presidência e da Modernização Administrativa, Maria Manuel Leitão Marques, e pela secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade, Rosa Monteiro, que centraram o discurso nas respostas disponíveis para as vítimas e no papel das forças de segurança, hoje melhor formadas para lidar com casos de violência doméstica, defendeu o ministro Eduardo Cabrita.

Maria Manuel Leitão Marques destacou o papel da prevenção e Rosa Monteiro frisou que, apesar de ser um crime público, a violência doméstica continua a ser denunciada maioritariamente pelas vítimas e que é preciso acabar com "a inacção" de familiares e amigos das vítimas e combater o que "está na raiz da violência que é a condição de subordinação da mulher na sociedade".

Lisboa, Porto e Viseu agendaram para este domingo, Dia Internacional da Eliminação da Violência Contra as Mulheres, marchas para alertar para a efeméride, com manifestos pela igualdade de género, pelo fim de todas as formas de violência contra as mulheres, num ano em que em Portugal já foram assassinadas 24 mulheres em contexto de intimidade ou relações familiares próximas, mais seis do que no ano passado, segundo dados do Observatório de Mulheres Assassinadas.

A marcha, marcada para as 15h00, arrancou do Largo do Intendente 40 minutos mais tarde, resguardada debaixo de muitos guarda-chuvas. Bombos a acompanhar palavras de ordem gritadas bem alto como "Nem uma a menos, vivas nos queremos" ajudaram a passar a mensagem que a chuva ia desbotando nas faixas e cartazes.

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