Casamento Renault-Nissan é valioso de mais para ser desfeito

Carlos Ghosn pôs em marcha poupanças de 32 mil milhões de euros em nove anos. E prometeu duplicá-las. Só por isso, um eventual divórcio seria devastador.

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Carlos Ghosn foi incumbido de manter a casa arrumada; era "chairman" da Renault, da Nissan e da Mitsubishi REUTERS/Yuriko Nakao

Carlos Ghosn está detido desde o dia 19, em Tóquio, e o mundo continua sem saber o que vai na cabeça dele. Suspeito de ocultar ao fisco 44 milhões de dólares (quase 39 milhões de euros) em remunerações, o gestor – que nem é dos mais bem pagos da indústria automóvel – mantém um silêncio que tem sido aproveitado por quase toda a gente para o queimar, desde a ex-mulher a analistas, passando pelo governo de Paris e, sobretudo, os japoneses. Ajudou ainda a alimentar a dúvida sobre a continuidade de uma aliança que, nos últimos dez anos, permitiu à Renault e à Nissan poupar 32,5 mil milhões de euros em sinergias, segundo as contas feitas pelo PÚBLICO, com base nas contas oficiais dos dois fabricantes.

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É uma soma considerável, sobretudo para a Renault: equivale a 84% do resultado líquido total declarado pelo fabricante francês desde o primeiro ano deste casamento, que foi selado a 27 de Março de 1999. O contrato desta aliança dizia, entre outras coisas, que a união assentaria no respeito mútuo e que Carlos Ghosn seria o responsável por manter a casa arrumada. Pelo que se viu e ouviu após a detenção, Ghosn e o respeito entre parceiros foram as duas primeiras baixas deste processo, que ainda vai no adro.

Quanto pode uma aliança?

Mais do que os supostos deslizes do gestor que Louis Schweitzer, então presidente-executivo (CEO) da Renault, escolheu para liderar esta aliança, a crise de confiança que aflige a união Renault-Nissan reflecte a evolução deste casamento que, em 2019, deveria assinalar 20 anos. Por um lado, há a dúvida sobre a sustentabilidade de um matrimónio em que o parceiro mais pequeno (a Renault) manda mais do que o maior (a Nissan). Por outro lado, coloca-se a questão sobre a capacidade de a própria aliança continuar a beneficiar os nubentes.

"A aliança beneficiou claramente os dois em termos de quotas de mercado, presença global, desenvolvimento tecnológico e redução de custos", analisam Caroline Palecki e Wiboon Kittilaksanawong, num trabalho de 2015 para a Western Ontario University (Canadá). Mas em 2014, a aliança lançou novos projectos de convergência em quatro áreas fundamentais (investigação e desenvolvimento, produção e logística, compras e recursos humanos) e, parecendo um caminho lógico, este passo adicional de integração levantou diversas questões, segundo os mesmos investigadores: "A busca de mais economias de escala à custa de uma crescente uniformização do produto limitaria a qualidade e a inovação? Os benefícios suplantariam os custos de organizar processos partilhados por duas entidades independentes e culturalmente distintas? Uma maior integração permitirá à aliança competir em simultâneo em mercados desenvolvidos e emergentes? Estaria em risco um dos pilares da aliança – a manutenção de identidades distintas –, minando a competitividade e sustentabilidade"? 

Antes da boda, a Nissan era vista como um caso perdido entre os fabricantes japoneses que, nos anos 80, lideraram a indústria. O domínio nipónico era tão avassalador que a França, primeiro, e a Comunidade Económica Europeia, depois, tentaram proteger os fabricantes europeus. Paris introduziu uma quota de importação de 3%, logo em 1976 e, 15 anos depois, a CEE adoptou quotas e uma taxa alfandegária de 10,3% (abolida em 2000).

Depois do sucesso mundial com o Sunny (que se estreou em 1966), a empresa que hoje tem sede em Yokohama – e que só nos anos 30 adoptou o nome Nissan –, foi-se mantendo na crista da onda até ao final dos anos 80, pela "excelência em engenharia e por ser pioneira em áreas tecnológicas e sofisticados métodos de produção", como recordam Anne-Claire Flament, Sumie Fujimura e Pierre Niles num artigo escrito em 2001 para a reputada escola de negócios INSEAD. Em 1984, a Nissan tinha fábricas em 17 países; era a segunda maior fabricante no Japão, afamada "pela competência tecnológica e pela qualidade dos carros", referem os mesmos investigadores.

Do Sunny à desgraça

Nos anos 90, rebentou a bolha do crédito no Japão e tudo mudou: começou a perder quota de mercado em 1989, a rentabilidade caiu, havia sobrecapacidade de produção, faltavam modelos novos e, sobretudo, liquidez. Em 1998, um ano antes de se aliar à Renault, a dívida da Nissan era 2,5 vezes maior do que o capital próprio. "A verdade – escreveria Carlos Ghosn num artigo de 2002 para a Harvard Business Review (HBR) – é que a Nissan até tinha muito capital. Só que estava empatado em imobiliário e negócios sem interesse. Quando cheguei, descobri que havia mais de quatro mil milhões de dólares investidos em centenas de outras empresas."

Ao fim de nove anos de sofrimento, e após oito meses de negociação, a Renault e a Nissan fecharam um acordo em 1999. Os japoneses eram então o elo mais fraco, mas rejeitaram sempre uma fusão. Tinham a noção de que, ultrapassados os problemas, voltariam a ser o parceiro mais forte e de maior dimensão e não estavam dispostos a desaparecer segundo as vontades dos franceses que mandaram para Tóquio um gestor contratado pel Renault em 1996 e que tinha provado ser capaz de salvar empresas respeitando diferenças culturais. Ghosn demonstrou-o no Brasil (1985), quando deu a volta ao negócio da Michelin, e repetiu o feito nos EUA, na fusão entre a Michelin e a Uniroyal Goodrich (1989). Depois de liderar uma agressiva reestruturação na Renault (1996-1998), foi mandado para o Japão, para repetir os êxitos anteriores.

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Carlos Ghosn encontrou "uma situação extremamente delicada" quando chegou ao Japão REUTERS/Kim Kyung-Hoon/Arquivo

"Era uma situação extremamente delicada", recorda Ghosn, no mesmo artigo para a HBR. "Nas fusões ou alianças, o sucesso não é uma questão de fazer mudanças. Também depende de proteger a identidade e a auto-estima das pessoas. Fazer mudanças e salvaguardar a identidade são dois objectivos que facilmente entram em conflito. E isso era particularmente verdade neste caso. Afinal, eu era um outsider, um não-Nissan, um não-japonês, e fui recebido por todos com cepticismo."

Num outro artigo para a Economist de 4 de Setembro de 2001, Ghosn recordava aqueles momentos assim: "Não sei descrever o que senti quando cheguei à Nissan. Déjà vu? Um truque da minha imaginação? Tinha a impressão de que já tinha estado ali. Mas 'ali' não era um lugar, antes uma 'situação'. Falta de rentabilidade, tendência para o caos e para a ausência de responsabilidade. Lembro-me de pensar: o que fiz até agora foi treinar para este momento. Se ignorar a diferença de escala, concluo que já fiz tudo o que me estão a exigir agora". O sucesso foi tal, numa empresa tão importante para o Japão como a Nissan, que Ghosn acabou imortalizado num livro de "manga".

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Amostra da "manga" japonesa que imortalizou Carlos Ghosn como herói DR

Diferença de escala e de cultura eram dois factores importantes então, mas à luz dos acontecimentos actuais, parecem mais importantes agora que Carlos Ghosn foi demitido do cargo de chairman pela Nissan. Os nipónicos nunca lhe perdoaram o facto de ganhar mais do que a generalidade dos gestores de topo no Japão. Mais do que isso, não lhe perdoam o facto de em Julho ter continuado em férias quando toda a administração da Nissan se apresentou em Yokohama perante a imprensa para pedir desculpa depois de ser apanhada na falsificação de resultados de testes de emissões, que durava há anos. "Ghosn achou que não tinha nenhuma responsabilidade", revelou um dos executivos nipónicos ao jornal Nikkei, sob anonimato, num artigo publicado após a detenção. Acrescentava que Ghosn terá então realçado que o presidente-executivo era Hiroto Saikawa e não ele.

Terá sido falta de solidariedade do gestor europeu ou espelho das diferenças intrínsecas desta aliança, que opõe a "natureza individualista de uma empresa francesa" à "orientação de grupo de uma empresa japonesa", como salientavam os autores do artigo do INSEAD? "Numa típica empresa francesa, as decisões são tomadas por maioria ou por alguém que tem a autoridade, ao passo que no Japão as decisões são baseadas em consensos. Da mesma forma, em França, responsabilidade e prestação de contas ficam nas mãos de indivíduos, que são recompensados de acordo com o desempenho, enquanto a Nissan distribuía responsabilidades e prestação de contas a grupos, que eram avaliados como um todo", anotam.

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Hiroto Saikawa, CEO da Nissan, faz uma vénia de despedida, depois de uma conferência em que atacou Carlos Ghosn REUTERS/Issei Kato

O que os últimos dias mostram, porém, é que há ressentimentos no Japão e teorias do lado francês de que se está perante um golpe, aproveitando uma investigação judicial iniciada por uma denúncia anónima. Ainda que todas as vozes tenham defendido a continuidade da aliança, o excel parece dar hoje razão a algumas queixas da Nissan, tal como nos primeiros 15 anos deu total razão a Ghosn, que pôs fim à agonia nipónica em dois anos (o plano previa três).

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Ministros da Economia de França e do Japão, Bruno Le Maire (esq.) e Hiroshige Seko, defenderam a aliança, numa reunião durante a semana para avaliar cenários REUTERS/Charles Platiau

A factura inicial foi difícil, até porque havia medidas difíceis de engolir. "No Japão, o sistema de emprego para a vida favorecia gestores bons a executar estratégias, mas matava a criatividade", resumem os três autores do artigo Nissan: The Ghosn Era, escrito em 2005, para a Universidade de Navarra. Ghosn acabou com isso, promoveu os melhores, independentemente da idade, reduziu de 1200 para 600 o número de fornecedores da Nissan, cuja factura de abastecimento era 15% e 25% mais cara do que a da Renault. Além disso, extinguiu 21 mil postos de trabalho (-14%) e fechou fábricas para reduzir 30% da capacidade instalada.

O francês não trabalhou só o bottom line – a alcunha de "matador de custos", ainda que realista, não traduz o valor real do gestor, que viu questionados os métodos quando a Renault se viu assolada, em 2007 por uma vaga de suicídios de trabalhadores – pois nos primeiros três anos, a Nissan lançou 22 novos modelos.

Desde então, as vendas só voltariam a cair com a crise de 2008, e nos anos dourados com uma margem operacional duas vezes maior do que a média do mercado. O volume de vendas é hoje 2,3 maior do que em 2000 e 50% mais alto do que o dos franceses; o activo vale três vezes mais hoje do que há 18 anos (e é quase 30% maior do que o da Renault). Porém, lucro e margem operacional têm vindo a cair na Nissan, e a subir na Renault, reforçando na Ásia a sensação de que, ao fim de quase 20 anos, a boda favorece os franceses e que as decisões não têm ajudado tanto os japoneses.

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Antes de se enredar com a justiça, Ghosn prometeu um plano para elevar até 2022 as sinergias da aliança até aos 10 mil milhões de euros anuais. Uma poupança que se esfumaria se se puser fim a este casamento que, em 2016, deixou de ser a dois e passou a ser um trio, incluindo a Mitsubishi. 

É difícil perceber como iria duplicar as sinergias em apenas três anos, mas, honra lhe seja feita, Ghosn sempre cumpriu com os números que punha no papel. Com excepção dos que, alegadamente, não declarou ao fisco. E essa falha pôs meio mundo a falar de um divórcio que, de tão caro que é, parece quase impossível de concretizar.

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