Faenas orçamentais

Os dados da economia e os avisos de Bruxelas fazem-me pensar se este gesto de autonomia não é antes uma imensa encenação para desviar atenções.

Declaração de interesses: sou filha de um forcado. O meu pai foi primeiro-ajuda no grupo de Santarém, com Rhodes Sérgio. Cresci a aprender o que são touradas. Não me limito a saber porque é que o forcado-da-cara chama boi ao touro, quando o incita. Conheço a simbologia das touradas e a sua história, mas também a coreografia própria de cada arte do toureio (o seu ballet). Sei o que é uma boa lide. E, quando hoje paro os olhos na transmissão televisiva de uma tourada, espanta-me a leviandade com que o inteligente manda dar música a cavaleiros que se limitam a enfiar os ferros na barriga do touro.

É por saber o que é uma tourada — e continuando afectivamente ligada às touradas como espectáculo — que tenho consciência do que é feito ao touro dentro de uma arena. Considero até que o toureio à espanhola é menos cínico do que o à portuguesa, já que o touro é morto logo e não levado em sofrimento para os curros, para ser abatido mais tarde. E é por saber o que é feito ao touro, que há anos a minha aficcion se esvaziou. É, para mim, hoje impossível vibrar, sentir prazer ou deleite, com um espectáculo que vive do sofrimento infligido a um animal. Não tenho nada contra as touradas. Não considero que os animais devam ser tratados como pessoas. Mas reconheço aos animais dignidade.

Dito isto, confesso que é com espanto que assisto à polémica sobre touradas em torno do Orçamento do Estado para 2019. Uma medida fiscal negociada pelo Governo com o PAN — os bilhetes de touradas pagarão 13% de IVA e os outros espectáculos 6% — transformou-se no assunto central da discussão política orçamental e nacional.

O CDS está, aliás, de parabéns por ter transformado a discussão sobre fiscalidade num aceso debate sobre o fim das touradas — algo que com o evoluir dos valores sociais poderá vir a acontecer. O CDS conseguiu lançar uma nova luta de causas a propósito de uma normalíssima declaração da ministra da Cultura, Graça Fonseca, que assumiu que taxar fiscalmente mais as touradas do que os outros espectáculos “não é uma questão de gosto, é de civilização” — uma posição que nada tem de polémico numa sociedade em que a defesa da dignidade dos animais tem feito o seu caminho e entrou na forma da lei em relação aos animais de companhia, como bem explicou Francisco Assis no PÚBLICO de quinta-feira.

Mais, a medida nem sequer é de Graça Fonseca, que tomou posse como ministra já depois de o OE2019 estar aprovado em Conselho de Ministros.Com o ambiente a aquecer, depois de Manuel Alegre se ter erguido em paladino das touradas, num artigo de opinião do PÚBLICO, até o primeiro-ministro, António Costa, saiu a terreiro em defesa da medida, igualmente no PÚBLICO, num texto que é, aliás, magnífico.

Quando o país achava que o assunto, por mais importante que seja, estava a arrefecer, na quinta-feira, dia 15, para a arena do debate parlamentar salta um grupo de deputados, capitaneados pelo líder da bancada, Carlos César, que avança com a inédita decisão de fazer uma proposta de alteração ao OE2019 para que as touradas paguem também 6% de IVA. Mostrando a sua autonomia em relação ao Governo, César até anunciou liberdade de voto numa matéria que faz parte do Orçamento. E, após a inusitada posição da bancada do PS, foi possível ouvir o desabafo do primeiro-ministro: “Estou surpreendido, lamento, se fosse deputado votaria contra.”

A faena orçamental do PS só terminará quando decorrer a votação final do OE2019. Sei que posso ser acusada de espírito conspirativo, mas não deixo de questionar sobre a razão que levou Carlos César a dar tal grito do Ipiranga. Os dados da economia e os avisos de Bruxelas fazem-me pensar se este gesto de autonomia não é antes uma imensa encenação para desviar atenções.

É que, no mesmo dia 15, o PÚBLICO noticiava que, segundo os dados do Instituto Nacional de Estatística, o crescimento da economia, no terceiro trimestre, foi de 0,3%, um abrandamento que põe em risco os 2,3% no final de 2018 previstos pelo Governo. Isto depois de, a 8 de Novembro, Bruxelas ter dito que o défice de 2019 será 0,6% e não 0,2% como está no OE2019 agora em discussão. Como em qualquer arena, toureia-se o touro que nos sai em sorte.

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