Super Bock em Stock: a nostalgia do que não se viveu e os betos que sabem rockar

Johnny Marr era o grande nome da primeira noite do Super Bock em Stock e ofereceu a dose de Smiths mínima requerida. Mas foram os Capitão Fausto que abalaram o Coliseu

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Johnny Marr Nuno Ferreira Monteiro
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Natalie Prass Nuno Ferreira Monteiro
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Nuno Ferreira Monteiro

Havia uma interessantíssima discussão a decorrer, lá para o final do concerto de Johnny Marr, no Coliseu de Lisboa: o músico Benjamim, que estivera antes em palco com os Cassete Pirata, defendia a teoria de que os Beatles foram a melhor banda da história, isto apesar de exibir um saco de pano dos Smiths; era suposto que eu argumentasse mas nisto deu-se aquela entrada, com aquele ataque – de modo que fiz um gesto na direcção do palco, como quem diz: "Contra isto não há argumentos".

(Na realidade fiz um pirete.)

Isto foi There is a light that never goes out, a canção que até hoje funciona como bandeira de tudo o que os Smiths representaram: romantismo extremo, a solidão dos literatos, humor (muito negro, no caso), bom gosto admirável (nas guitarras, nos arranjos), orgulho e ridículo num só tema: "And if a double-decker busCrashes into usTo die by your sideIs such a heavenly way to die// And if a ten-ton truckKills the both of usTo die by your sideWell, the pleasure, the privilege is mine".

O Coliseu, que por essa altura já estava cheio, explodiu; Marr capitalizou o momento e em certas secções deixou que fosse só a sala a cantar, os instrumentos silenciados. Quando a canção acabou, todos tinham tido o que queriam: os que nasceram na década de 70 e foram demasiado tarda para ver os Smiths ao vivo tiveram a recompensa para a sua eterna espera; e Marr voltou a sentir um pouco do amor que teve até há 31 anos. É humano e precisa de ser amado, como todos os outros.

Não é exactamente certo que isto seja nostalgia – embora seja absolutamente claro que é nostalgia: aquelas pessoas ali queriam ouvir canções dos Smiths, porque os Smiths – muito provavelmente – foram a banda que lhes fez companhia na adolescência e na entrada da juventude, e tudo o resto, as canções de Marr a solo, a ida à obra dos Electronic, constituíram só uma forma simpática de ocupar tempo, de entreter, de Marr não ser obrigado a dizer à descarada "Eu sei que vocês estão aqui pelas três ou quatro canções dos Smiths que vou tocar, OK, vamos lá despachar isto".

Ao mesmo tempo não é nostalgia, pela simples razão de que a esmagadora maioria das pessoas ali presentes eram demasiado novas para se lembrarem dos Smiths enquanto banda no activo – isto se fossem nascidas em 1987, e arrisco dizer que metade não era. Os Smiths, para a maior parte daquelas pessoas, são a banda que herdaram dos irmãos mais velhos, daquele primo que já andava na universidade, da tia – e mesmo assim, apesar de serem de outra geração, fizeram tanto sentido que serviram de banda-sonora para as dores de crescimento.

Uma forma simples de avaliar do grau de nostalgia de um concerto como o de ontem é pensar nas festas e nos concertos Revenge of the 80s, que entretanto criou o Revenge of the 90s – em que se passa (e/ou actuam) gente como Kim Wilde ou Rick Astley, sendo que entretanto há merchandising e lojas e todo um conceito à volta destas Revenges. Nostalgia no sentido estrito é isto: uma experiência que permite a pessoas que envelheceram reviver, mais tarde, algo que apreciaram num determinado momento das suas vidas – por norma a adolescência, livre de problemas e complicações.

É difícil defender a tese de que Marr & Morrissey são como Wilde e Astley. Não foram one-hit wonders, não tentaram escalar as tabelas de vendas recorrendo aos truques da época, e a memória deles não está, para quem hoje enche os concertos de um e de outro, obrigatoriamente associada às alegrias da juventude. Ninguém encontra nas canções de Rick Astley uma forma de compreender o mundo actual – mas os dos Smiths, apesar de servirem como guia da entrada na idade adulta, adaptam-se com facilidade aos trintas e aos quarentas (dos cinquentas nada sei).

Seja então uma estranha forma de nostalgia por algo que nunca verdadeiramente definhou, ou uma saudade do que nunca se teve: o facto é que aquelas pessoas queriam canções dos Smiths e tiveram-nas: primeiro uma Bigmouth strikes again com as guitarras no sítio, uma How soon is now absolutamente extraordinária e a comunhão que foi There is a light that never goes out. Se fechássemos os olhos acreditaríamos serem os Smiths em palco, tão imaculadas que foram as versões – com uma diferença: a voz.

Como se qualifica a voz de Morrissey? Doce como vitela a desfazer-se na boca, é capaz do patético de um grito adolescente numa descida abrupta na montanha-russa; Johnny Marr, por sua vez, soa a um camião TIR a fazer meia-volta na IP5: eficaz, seguro mas desprovido de personalidade ou elegância. No caso, não estragou: e um par de canções suas, particularmente Day in day out e Easy money, revelaram-se bem orelhudas.

Que é, aliás, a maior qualidade dos Cassete Pirata, que não arrastam pessoas por revivalismo mas cujo som tem nostalgia por aquilo que os seus membros não viveram: uma grande guitarra e um imenso baterista, ladeados por dois sintetizadores, fizeram-nos recordar a pop cristalina de uns Orange Juice – e deram um belo concerto, pejado de refrães que não têm receio de se abalançar ao épico. Ainda na secção pop-enxuta-sem-medo-de-ser-feliz é preciso destacar, na primeira noite de Super Bock em Stock, Lena D’Água e Primeira Dama com a Banda Xita – Lena devia estar mais vezes em palco a dar voz a canções pop, que é isso que uma primeira dama merece.

Neste tipo de eventos, com vários concertos em simultâneo, há sempre algo se perde: não consegui ver Nakhane, de modo a apanhar o início de Johnny Marr, o r’n’b de Natalie Prass só de raspão – mas o que aconteceu no Coliseu, no fim da noite, há-de ter ficado na memória de muitos miúdos: qualquer coisa aconteceu nos últimos dez anos de modo que toda uma geração enche hoje o Coliseu e canta cada canção dos Capitão Fausto.

E que grande concerto que eles deram: apoiados por um trio de coristas, deram uma lição de rock psicadélico que não teme a simplicidade de uma melodia luminosa, explodiram em guitarradas, não temeram a grandiloquência que um coro oferece: jogaram como o Ajax dos anos 70, o Porto de 1987, com aquela arrogância de quem sabe ser bom e ter o público do seu lado.

Os betos também sabem "rockar", é essa a lição. Essa e a de que até o mais literato dos humanos sente nostalgia, até por aquilo que não viveu.

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