Desprendimentos de terras e de direitos

Com um salário exíguo, o Júlio tinha, ao menos, direito a trabalhar em condições de segurança.

No dia 19.01.2016, o Júlio trabalhava como servente sob as ordens, direcção e fiscalização da “Vamos Andando, Lda.”, numa obra que consistia na abertura de uma vala, escavada em terreno de xisto, para instalação de tubagem de saneamento. Quando se encontrava no interior da vala, o Júlio foi atingido por uma fraga que se desprendeu de uma das faces da vala e o empurrou contra a face oposta. A vala não tinha qualquer tipo de entivação, isto é, não tinham sido colocadas quaisquer pranchas ou qualquer travejamento horizontal ou vertical para segurar as terras. As terras e pedras de um dos lados do talude desprenderam-se, não tendo qualquer suporte que as fixasse, e caíram por cima do Júlio, deixando-o soterrado. Como consequência directa e necessária desse acidente, o Júlio sofreu múltiplas lesões que foram a causa da sua morte.

No processo por acidente de trabalho, o tribunal de 1.ª instância, tendo em conta que o ordenado anual do Júlio era de 8453,34 euros, condenou a “Vamos Andando, Lda.” e a seguradora a pagarem uma pensão anual de 2638,82 euros para a viúva e de 1759,88 euros para o filho, correspondentes a aproximadamente 40% e 20% da remuneração anual do Júlio, como resulta da lei, considerando que o acidente que o vitimara não tinha sido provocado pela entidade patronal nem resultara da violação das regras de segurança no trabalho.

Inconformados, viúva e filho, representados pelo Ministério Público, recorreram para o Tribunal da Relação de Guimarães (TRG), alegando que o montante das pensões anuais devia ser igual ao da retribuição anual que recebia o Júlio, uma vez que o acidente não fora uma infelicidade ou um azar, antes resultara de falta da observação, por parte da “Vamos Andando, Lda.”, das regras sobre segurança no trabalho. E, nesses casos, a responsabilidade da entidade patronal abrange a fixação de uma pensão anual de valor igual à retribuição, para além da totalidade dos prejuízos, patrimoniais e não patrimoniais, sofridos pelo trabalhador e seus familiares. O TRG deu razão à viúva e ao filho do Júlio, considerando que a “Vamos Andando, Lda.” violara as regras de segurança impostas pelo trabalho que o Júlio estava a realizar, nomeadamente ao não ter colocado quaisquer tábuas para evitar os desabamentos e, assim, condenou a “Vamos Andando, Lda.” a pagar à viúva uma pensão anual e vitalícia de 5279,64 euros e ao filho uma pensão anual e temporária de 3519,76 euros.

Insatisfeita, a “Vamos Andando, Lda.” recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) alegando que a lei não a obrigava a colocar quaisquer tábuas ou barreiras em valas de profundidade inferior a 1,20 metros e escavadas em rocha ou terreno rochoso como era o caso da vala onde estava a trabalhar; por outro lado, não era possível concluir que, se tivesse colocado as tábuas, teria evitado o desmoronamento/desprendimento da pedra que atingira o Júlio, já que não se sabia o que pro­vocara o desmoronamento.

Mas os juízes conselheiros Gonçalves Rocha, António Leones Dantas e Júlio Gomes não foram na conversa da “Vamos Andando, Lda.” e, no passado dia 25 de Outubro, confirmaram a decisão do TRG. Era verdade que a lei só regulava as características técnicas a que deviam obedecer as entivações a utilizar na abertura de trincheiras com uma única frente e com profundidades superiores a 1,20m, mas uma vala, como era o caso, tem duas frentes e a lei estabelece, como princípio geral, a obrigação de entivação das valas, não prevendo qualquer profundidade mínima para o efeito.

Por outro lado, embora não se pudesse garantir que se tivesse colocado as tábuas se teria evitado a morte do Júlio, também não se podia considerar que esta violação das regras de segurança por parte da “Vamos Andando, Lda.” tinha sido indiferente à ocorrência do acidente e tanto bastava para se considerar que havia uma relação de causa-efeito entra a falta das tábuas e o acidente.

O exíguo salário mensal do Júlio era de 530 euros por mês e o seu duro trabalho era o de servente. Parece que não será excessivo considerar que, ao menos, tinha direito a trabalhar em condições de segurança, como a Constituição determina.

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