A meta de May: cidadãos com menos direitos que batatas

Com a sua frase, Theresa May deixou escapar como pretende vender o péssimo acordo que negociou com a UE.

Na semana passada, os negociadores da Comissão Europeia e os do governo britânico chegaram a um acordo “técnico” para o divórcio entre a União Europeia e o Reino Unido. Theresa May, a chefe do governo britânico, parece ter causado uma boa impressão entre os seus pares do continente pela sua capacidade de resistência e compromisso. Passado uns dias, Theresa May falou à imprensa britânica e mostrou aquela que, para mim, é a sua verdadeira face: “Com o fim da liberdade de circulação, de uma vez por todas, vamos deixar de ter imigrantes europeus a saltar por cima da fila para conseguirem empregos no Reino Unido.”

Esta frase não revela apenas a ambiguidade de uma líder política que sempre tentou combinar dois lados opostos da sua personalidade no que diz respeito à Europa: economicamente, Theresa May admitia ser pró-europeia, mas culturalmente sempre foi mais anti-europeia até do que Boris Johnson (ao passo que Johnson tinha instintos iniciais pró-imigração, que veio a mudar com os ventos da política recente, Theresa May sempre foi, desde os tempos em que era ministra do Interior, obcecada por criar o ambiente menos acolhedor possível para quem ela considerava “imigrante”).

O que esta frase revela é, mais do que essa ambiguidade, a total assimetria com que os cidadãos da UE foram vistos durante todos estes anos no Reino Unido ou fora dele. Para os políticos britânicos, com Theresa May à cabeça, um português ou outro cidadão da UE que vá trabalhar para o Reino Unido não é um cidadão a exercer um direito recíproco de que os britânicos em Portugal e noutros 26 países também usufruem.

Os europeus no Reino Unido são imigrantes a “saltar por cima da fila”. Já os britânicos no resto da União Europeia são pitorescamente tratados como “expats”, ou seja, uns expatriados cuja imagem tradicional sugere uma coorte de colonos caturras segurando os seus gin-tónicos numa varanda de um qualquer país soalheiro. Os continentais no Reino Unido, sejam eles catedráticos ou serventes de pedreiro, devem ser entendidos como um problema. Os britânicos no resto da UE, como uma peculiaridade. E assim vamos.

A questão é que, com a sua frase, Theresa May deixou escapar como pretende vender o péssimo acordo que negociou com a UE. Theresa May admite manter o Reino Unido como país comercialmente satélite do mercado único e politicamente incapacitado de ter voz nas regras desse mesmo mercado único. Theresa May admite desacoplar a Irlanda do Norte do resto do país e mantê-la, na prática, aduaneiramente unificada à República da Irlanda e ao resto da União Europeia. Theresa May até admite pagar pelo privilégio. Mas aquilo que Theresa May não pode admitir é qualquer continuação da liberdade de circulação. Para Theresa May, um saco de batatas tem de ter mais direitos do que uma pessoa, mesmo quando pretende ter acesso aos mercados dos países de onde essas pessoas são oriundas.

Ora, se tudo isto fosse uma brincadeira, talvez se pudesse encolher os ombros e dizer: tal como o Reino Unido beneficiou enormemente com a imigração (comunitária ou não) nas últimas décadas, esperemos para ver como se vai aguentar o país quando os imigrantes se fartarem de serem diabolizados e se forem embora, a começar pelos médicos e enfermeiros, entre os quais milhares de portugueses, que aguentam o Serviço Nacional de Saúde britânico. Mas isto não é uma brincadeira: por detrás destas palavras e destas políticas estão vidas de pessoas acerca das quais dizer que “saltaram por cima da fila” é puramente insultuoso.

Pessoas formadas nos sistemas educacionais continentais que foram engrossar as fileiras da ciência britânica. Jovens que se estabeleceram no Reino Unido com os seus pais ou crianças que lá nasceram e não têm nacionalidade britânica. Acima de tudo, gente que só fez o mesmo que fizeram também os nossos (por agora) concidadãos comunitários britânicos que vivem às centenas de milhares em Portugal, Espanha, França e por aí afora — e que, felizmente, não são demonizados pelas populações nem pelos políticos dos países onde vivem.

E como nada disto é uma brincadeira, mas mexe com as vidas das pessoas, talvez fosse altura de os líderes políticos do resto da UE, em vésperas de uma reunião do Conselho dedicada ao "Brexit", levarem bem claro em mente que Theresa May pretende vender em cada o acordo a que chegarem em cima das costas dos nossos concidadãos. E por isso mesmo não é ainda tarde para porem em cima da mesa a exigência de garantias políticas suplementares sobre o tratamento dos nossos concidadãos no Reino Unido. Ou então serão eles também culpados de, no quadro de um mercado integrado, admitirem dar às pessoas menos direitos do que aos sacos de batatas.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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