Justiça e corrupção (II)

Todo o poder corrompe. E toda a democracia enfrenta o desafio geracional de regenerar as suas instituições.

No seguimento da crónica anterior, regresso ao tema do estado atual da justiça portuguesa e do combate à corrupção:

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No seguimento da crónica anterior, regresso ao tema do estado atual da justiça portuguesa e do combate à corrupção:

1. A possível recondução da anterior PGR e a escolha de quem a substituiu foi um espetáculo mediático – “um momento definidor para Portugal”, “atreveram-se”. E, no entanto, na sua despedida, Joana Marques Vidal não teve dúvidas em dizer que “não há uma estratégia nacional contra a corrupção”. Em pleno 2018. Os partidos e atores políticos, incluindo os que reclamam que o combate à corrupção está no seu ADN (PS) ou é exclusivo da sua área política (direita), nem se dignaram responder. Podemos, pois, concluir que não há qualquer programa consistente e estrutural para combater a corrupção. Ao mesmo tempo, não existe o menor interesse em definir tal estratégia nacional por parte da classe política (que, após os elogios e encómios da praxe, ignorou olimpicamente este posfácio do mandato da PGR cessante). Não é preciso ser bruxo para adivinhar que todos vão prometer tal estratégia nos programas eleitorais do próximo ano.

2. Não havendo nenhuma estratégia nacional, também não choca que o Orçamento para 2019 corte nos recursos disponíveis para o Ministério Público e para a PJ. E, das 150 medidas aprovadas nos pacotes legislativos de 2010 e 2015, avaliação retrospetiva de impacto não consta. Depois, na opinião publicada e no combate partidário, a reflexão tende a esgotar-se na delação premiada e no enriquecimento ilícito. Reformas na organização do Ministério Público ou do Conselho Superior do Ministério Público não abundam (algumas ideias úteis são mencionadas no tal documento das 85 medidas do pacto para a justiça, que a classe política deitou para o lixo, como discuti no artigo anterior), qualquer discussão sobre o ordenamento jurídico (por exemplo, cumprimento da sentença penal após confirmação pelo tribunal de segunda instância ou a aproximação do estatuto da presunção de inocência do generoso modelo português ao menos generoso modelo continental) praticamente não existe fora da tecnocracia jurídica vigente. Propostas para a criação de tribunais especializados (tipo Audiência Nacional espanhola) ou mecanismos processuais que assegurem a celeridade dos processos-crime na área da corrupção por titulares de cargos políticos (inclusivamente “aforamientos”, ou seja, escolha de foro) perdem-se na espuma do dia. E tudo acaba sempre na vaga promessa de que tudo vai ser investigado, doa a quem doer.

3. Não vale a pena insistir que faço um balanço positivo do mandato de Joana Marques Vidal. Mas uma coisa é considerar que a abertura de muitos inquéritos (haverá disponibilidade de recursos humanos e orçamentais para tanta investigação?) contrasta com o marasmo de mandatos anteriores, outra coisa é falar de resultados. Quais resultados? Basta pensar no caso BPN – dez anos passados desde a sua nacionalização e muitos mil milhões depois (diz-se que foram seis mil milhões de euros), não há ninguém a cumprir pena de prisão. E as primeiras sentenças estão a sair agora, seguindo-se a habitual procissão de recursos e arguições de nulidade. E quem diz BPN diz BPP. Na Operação Marquês ou sobre o caso GES/BES, nem os julgamentos começaram e já lá vão quase cinco anos. Nos vistos gold, adia-se a leitura de sentença. Arquivamentos de inquéritos também começam a ser objeto de notícias periódicas (quase dois terços dos processos de corrupção foram arquivados em 2017). O inquérito EDP vai e vem. Numa perspetiva otimista, tudo isto, talvez, produza resultados daqui a dez anos. Por agora, temos uma mão cheia de nada.

4. Contudo, na minha opinião, mais grave que a ausência de resultados e que a morosidade extravagante da justiça penal portuguesa (dez, 15 anos desde as primeiras acusações na comunicação social até qualquer sentença transitada em julgado) é a total incapacidade de recuperar património. No caso BPN, por exemplo, as sentenças de prisão são bem menos relevantes (até porque dificilmente vão ser efetivas). O que assusta mesmo é perceber que a recuperação de ativos anda por volta de uma taxa de 1%. Idem no caso BPP. Seja por incapacidade ou inabilidade, seja por má conceção do sistema processual, a verdade é que os muitos mil milhões desaparecidos ilicitamente são isso mesmo – desaparecidos. Esfumaram-se. E a justiça portuguesa (seja pela via judiciária, seja pela via regulatória) confessa-se simplesmente inapta.

5. Todo o poder corrompe. Por isso, necessariamente, toda a democracia enfrenta o desafio geracional de regenerar as suas instituições. Uns, como os anglo-americanos ou os nórdicos, levam já alguns séculos conseguindo fazer essa regeneração sem colocar em causa a própria democracia. Outros, como Portugal, tiveram uma tradição de pronunciamentos militares ou revoluções para conseguir mudar as suas instituições periodicamente. Somos, pois, a primeira geração de portugueses que enfrenta o desafio de regenerar em democracia. A classe política finge que não percebe a prioridade e insiste no vira o disco e toca o mesmo: mais uma comissão de ética, mais um conselho de prevenção da corrupção (uma inutilidade), mais uma revisão do Estatuto do Ministério Público (já lá vão 13), mais um guia qualquer de transparência, mais uma conversa qualquer. Depois o papão é o populismo judiciário. Nem a eleição de Bolsonaro comove – afinal, somos o país dos brandos costumes. Até ver!

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico