A (in)cultura política descentralizada e a tourada do IVA

Por que razão a tourada há-de ficar com o IVA na taxa intermédia e os Aquários e Jardins Zoológicos com a taxa normal de 23%? Será ainda menos civilizacional visitar um Zoo do que assistir ao sofrimento de um touro bravo?

Que este governo do PS, a governar com apoio parlamentar da geringonça, tem falhado na construção de uma política cultural consistente e propiciadora da tão necessária estabilidade do sector, é por demais evidente. A começar pela constante sub-orçamentação a que vem sujeitando o desenvolvimento cultural e artístico das populações, é notório que estamos muito distantes ainda do 1% para a cultura no Orçamento do Estado.

Durante a campanha eleitoral prévia às eleições legislativas de 2015, a dimensão cultural da governação foi destacada por António Costa como uma área fundamental para o desenvolvimento sustentável, e o restabelecimento do Ministério da Cultura era tido como garante de uma "política cultural coerente e sustentada" (Programa Eleitoral do PS, 2015). Agora, quase no fim da legislatura, este ministério, cuja Lei Orgânica ainda não foi sequer publicada (que tenhamos dado por isso), contabiliza já três ministros, sem que nenhum deles tenha de facto deixado um legado que enalteça a recuperação legítima da cultura como Ministério.

 Alguma ignorância estrutural do que sejam as necessidades das políticas culturais, em sentindo amplo e sectorial, e uma certa sobranceria dos ministros, causa-nos uma sensação de inquietante estranheza. Se por um lado estamos a falar do mesmo Partido Socialista que tem como legado histórico um dos mais competentes ministros da cultura desde o 25 de Abril de 1974 (Manuel Maria Carrilho), por outro, são patentes as falhas de casting com os três ministros desta legislatura. Porém, duas excepções merecem ser assinaladas, Miguel Honrado (SEC) e Paula Varanda (DGartes), que pelos seus percursos e competências eram os mais adequados aos cargos que ocuparam, e que apenas tiveram azar no contexto ministerial em que agiram.

As polémicas geradas em torno do IVA na proposta do Orçamento do Estado.

A medida anunciada pelo Ministério da Cultura no Orçamento do Estado para 2019 (OE2019), que visa aplicar a taxa reduzida do IVA aos "espectáculos culturais", não vem descrita nas “Grandes Opções do Plano 2019” do Governo, nem no Programa Eleitoral do PS. Esta ausência parece indiciar alguma falta de reflexão e racionalidade política subjacente à tomada de decisão.

A Proposta de Lei do OE2019, propõe colocar na Lista I – anexo do Código do IVA – taxa reduzida (6% - Portugal continental): a) as prestações de serviços de artistas tauromáquicos, actuando quer, individualmente quer integrados em grupos, em espectáculos tauromáquicos; b) entradas em espectáculos de canto, dança, música, teatro e circo realizados em recintos fixos de espectáculo de natureza artística ou em circos ambulantes. Mas propõe também integrar na Lista II – taxa intermédia (13%): Entradas em espectáculos de cinema, de tauromaquia e outros espectáculos de natureza artística.

No geral, a proposta visa reverter a medida imposta pelo governo anterior que sujeitou os  bilhetes dos espectáculos à taxa intermédia. No entanto persistem ainda algumas incongruências no âmbito de “espectáculos” com animais. Por que razão a tourada há-de ficar com o IVA na taxa intermédia e os Aquários e Jardins Zoológicos com a taxa normal de 23%? Será ainda menos civilizacional visitar um Zoo do que assistir ao sofrimento de um touro bravo? 

O retorno do diferendo na opinião pública em torno do IVA aplicado à tauromaquia é, parece-nos, intempestivo, uma vez que este assunto da tauromaquia (cultura vs tortura) se vem fazendo há muito mais tempo e com argumentos próprios que extravasam, em muito, a lógica instrumental da fiscalidade e das finanças públicas. É essencialmente uma controvérsia entre aqueles que defendem os (novos) direitos dos animais e o seu bem estar enquanto seres sencientes, e os que defendem que a tauromaquia faz parte da tradição cultural, e por isso deve ser mantida apesar do sofrimento animal. Neste contexto, a Ministra da Cultura escusava de emitir a sua opinião civilizada – não reduzir o IVA na tourada porque é um espectáculo bárbaro - quando o tópico em causa incidia sobre matéria fiscal, contribuindo assim para uma renovada temporada de soundbytes, repetitiva e sem novos elementos pertinentes para um debate fundamental.

Falta explicar porque razão as prestações de serviços de artistas tauromáquicos é sujeita à taxa reduzida (pago pelas empresas de tauromaquia), enquanto que os ingressos (pagos pelos) aficionados é taxado a 13%. É que se o Ministério da Cultura considera a actividade tauromáquica um espectáculo incivilizado, deveria manter essa perspectiva em toda a sua cadeia de valor.

O que a ministra deveria ter feito, em prol do esclarecimento público, era apresentar justificações concretas de âmbito fiscal para legitimar a proposta relativa às taxas do IVA. Mas lamentavelmente não o fez. Todavia, como é sabido, se este governo ou os vindouros quiserem efectivamente tomar uma posição concreta acerca do futuro da tauromaquia, terão de “pegar o touro pelos cornos” e ter coragem para tomar decisões de fundo. Nomeadamente retirar a tauromaquia do Conselho Nacional de Cultura e cortar o financiamento público a essa actividade.

 A fundamentação para a existência de diferentes taxas de sentido oposto, taxa reduzida e taxa agravada (para consumos de luxo), serve, entre outros objectivos, para proteger e incentivar certos consumos de bens considerados essenciais (taxa reduzida), mantendo-se como diz o CIVA, "a protecção fiscal a consumos essenciais que constituem ainda uma parte importante das despesas das famílias".

Colocar os bens culturais (e/ou artísticos) na categoria de “bens essenciais” é um salto que carece de uma discussão mais aprofundada no âmbito da economia política da cultura. Se a intenção aparenta ser uma ideia progressista e adequada à “culturalização da economia”, i.e., ao estatuto das economias e dos consumos de bens culturais nos países ditos desenvolvidos, onde as despesas tendem a dirigir-se para o topo da “Pirâmide de Maslow”, à posteriori emergem dúvidas e perplexidades na categorização do que sejam efectivamente, no contexto actual das industrias culturais criativas (ICC), os bens a enquadrar como “essenciais” ao consumo cultural. É um problema complexo e que exigiria, provavelmente, um regime especial do IVA, dada a profusão de produtos e serviços culturais existentes numa “sociedade do espectáculo” (Guy Debord).

Tendo em consideração que a receita fiscal do Estado deve ser sustentada e equilibrada por uma racionalidade distributiva, devendo ser taxados por cima os consumos sumptuários e por baixo os consumos correntes, constata-se que a aplicação desta simplificação ao universo dos bens culturais nos catapulta para o eterno debate do(s) valor(es). Dever-se-ia assim reflectir acerca dos valores instrumentais, institucionais, intrínsecos e estruturantes do consumo, das práticas e da produção de bens culturais.

Numa visão mais ampla, já completamente assumida pelos actuais modelos de políticas culturais, haveria que ter em consideração todos os subsectores que hoje integram a economia da cultura e da criatividade em pé de igualdade e legitimidade face aos poderes públicos. Faria sentido equacionar, por exemplo, as taxas do IVA dos vídeo jogos, incluídos a par do livro, do cinema, da discografia e do audiovisual, no sector das industrias culturais. Quanto mais subsectores forem incluídos no questionamento acerca do que sejam os “bens essenciais”, e que por isso sujeitos à taxa reduzida do IVA, é evidente que mais complexa se torna a criação de uma eventual lista exaustiva dos bens a incluir em cada tipo de taxa. Quais seriam os critérios e os parâmetros a ter em consideração?

Na proposta do OE2019, a discussão incide desde logo, para além da tourada, em se saber que critérios levam a incluir o cinema na taxa intermédia ou a excluir da taxa reduzida os espectáculos não realizados em recintos fixos de espectáculo.

No sector das artes (espectáculos), não se entende porque razão a proposta de IVA a 6% só se aplica a espectáculos ocorridos em recintos fixos, e não em espaços alternativos ou na rua, como é o caso dos mais diversos festivais. Esta distinção cria estranhas distorções na lógica do benefício da taxa reduzida, se tivermos em conta, por exemplo, promotores empresariais (com fins lucrativos) e promotores sem fins lucrativos que são, como se sabe a figura jurídica da maior partes das entidades de produção artística. Um exemplo concreto da disparidade, um espectáculo exibido no “Pavilhão Atlântico” (recinto fixo) por uma grande promotora de eventos de entretenimento, cujo posicionamento empresarial visa essencialmente o lucro comercial, beneficia do IVA a 6%. Uma entidade sem fins lucrativos que organize um festival de artes comunitário numa aldeia, visando objectivos de desenvolvimento cultural, é penalizada com o IVA à taxa intermédia porque realiza espectáculos ao ar-livre ou em espaços não convencionais.

No sector das industrias culturais, porque razão a exibição de cinema é discriminada e sujeita ao 13% de IVA? Na perspectiva do ministério, o cinema é uma arte menor ou incivilizada? Não se deveria incentivar o aumento da procura de cinema independente, separando esta categoria do “cinema de entretenimento” produzido e distribuído pelas majors americanas, as quais contam com uma poderosíssima difusão nos circuitos das salas de cinema comercial em Portugal?

Se usássemos um critério classista na fruição de bens culturais para racionalizar a taxação do imposto, poderíamos justificar não haver razões para reduzir o IVA na cultura, uma vez que todos os estudos e estatísticas o comprovam: o hábito regular de consumo cultural é protagonizado por indivíduos com rendimentos superiores (classe média-alta), com mais estudos e maior capital cultural – a designada leisure class ( Thorstein Veblen). Consequentemente, não é uma diferença de 7% no imposto que os demove de consumir, mas perde-se uma importante fatia de receita fiscal nos bilhetes dos espectáculos mais caros. Por outro lado, de modo inverso, a redução do IVA nestes mesmos espectáculos, não seria suficiente para incentivar os indivíduos e as famílias com menores rendimentos a frequentá-los, dado manter-se a pressão da barreira económica.

No caso de se associar a taxa reduzida do IVA a uma estratégia de alargamento da base social dos públicos da cultura, vulgo políticas do acesso ou democratização da cultura, é conhecido que a barreira de preço não é influente quando se trata de projectos artísticos contemporâneos, designadamente aqueles que são financiados pelo Estado e que circulam nos teatros nacionais e municipais, até porque, o valor dos ingressos são tabelados pelas respectivas tutelas e correspondem a uma política de preços com diversos descontos e atentas às desigualdades sociais. Portanto, como há muito se conhece, não basta alterar a política de preços para motivar e alargar o acesso de largas camadas da população ainda excluídos das práticas e dos consumos culturais.

Sejam quais forem os métodos usados para se atingir o maior grau possível de racionalidade política e justiça fiscal na sujeição dos bens culturais a determinada taxa do IVA, não é desejável deixar de incluir toda a gama de bens, produtos e serviços culturais que integram os sectores das ICC.

Lei-Quadro da Descentralização – Cultura

Se as questões de “civilização” são uma preocupação da ministra e do governo, porque razão  fazem uso de uma linguagem autoritária oriunda do antigo regime quando se trata de legislar sobre a descentralização/municipalização da cultura?

Com a aprovação da Lei-quadro da transferência de competências para as autarquias locais e para as entidades intermunicipais (Lei n.º 50/2018 de 16 de agosto), a dimensão cultural fica reduzida a umas míseras quatro alíneas do Artº 15, e praticamente despida de qualquer sentido democrático e da sua importância vital para os territórios.

Comparando os artigos da Lei de 1999 (Transferência de Competências Para as Autarquias Locais) com os da Lei de 2018, observa-se desde logo a pobreza semântica do legislador, e mais grave, o tom “salazarista” das expressões utilizadas: "c) Executar o controlo prévio de espetáculos, bem como a sua fiscalização, autorizando a sua realização quando tal esteja previsto" (Lei n.º 50/2018, Artigo 15.º). A infeliz expressão: "Executar o controlo prévio de espectáculos" é de facto digna de um Secretariado de Propaganda Nacional. Desde quando, em democracia, se executa o controlo prévio de iniciativas culturais? 

Estas palavras de ordem nem sequer têm lógica ou adesão à realidade no actual contexto administrativo. O Decreto-Lei n.º 23/2014 (de 14 de fevereiro), que aprova o regime de funcionamento dos espectáculos de natureza artística e de instalação e fiscalização dos recintos, através da Inspeção-Geral das Atividades Culturais (IGAC), contradiz, e bem, a linguagem autoritária herdada do antigo regime: "O promotor deixa de estar sujeito a autorização administrativa para o exercício da respetiva atividade e o seu registo, efetuado no seguimento de mera comunicação prévia (…) No funcionamento dos espetáculos de natureza artística, elimina -se o procedimento associado à atual licença de representação...".

Assim, de revogação em revogação, e de lei em lei, vai-se perdendo o entendimento de quais são afinal as competências das autarquias em matéria de cultura. E, a única coisa que vai crescendo a olhos vistos é a pobreza da mentalidade política cultural ao nível local.

Propositadamente, ou por ignorância intrínseca, o certo é que para além da visão tecnocrática e neoliberal aplicada actualmente à administração da cultura local, é o próprio Partido Socialista que parece ignorar o legado dos Estados Gerais (1995) no que concerne à descentralização cultural. Na apresentação das linhas programáticas para a cultura, pode ler-se: "Descentralizar é hoje muito mais do que permitir às regiões periféricas um contacto meramente pontual e casuístico com actividades culturais exteriores. Torna-se também indispensável dotar cada vez mais as regiões do País dos meios necessários à concretização de uma vida cultural que, salvaguardando a especificidade de cada sector de actividade artística, incorpore uma componente cada vez mais significativa de iniciativa própria, capaz de conduzir, tanto quanto possível, a perfis culturais diversificados e autónomos".

Nesta que foi – consensualmente - a época de ouro das políticas culturais em Portugal, com Manuel Maria Carrilho como ministro da Cultura, é possível encontrar dois dos vectores fundamentais da descentralização e correlativa municipalização da cultura. Por um lado, salienta-se que o fundamental num processo de descentralização cultural está para alem de promover o contacto das populações, meramente pontual e casuístico, com actividades culturais exteriores – leia-se, a descentralização deve ultrapassar as políticas do “acesso” e a mera democratização da cultura cujo paradigma reside na acessibilidade da cultura legitimada.

Por outro, afirma-se que, antes pelo contrário, a descentralização reside na necessidade de dotar o país dos meios necessários à concretização de uma vida cultural que incorpore uma componente cada vez mais significativa de iniciativa própria, capaz de conduzir, tanto quanto possível, a perfis culturais diversificados e autónomos. Ou seja, a defesa e a promoção de medidas em favor: i) Da mudança de paradigma, da democratização (descentralização da oferta) à democracia cultural (produção própria); ii) Da vitalidade cultural endógena dos territórios; iii)  Da existência de meios e condições dirigidas à produção cultural local por iniciativa própria dos cidadãos e com autonomia; iv) Da diversidade cultural.

De um modo geral, estamos confrontados com um cenário de governação cultural municipal que despreza abertamente a noção de Cultura 3.0 (Pier Luigi Sacco, 2011), a qual significa o potencial de desenvolvimento cultural e criativo dos territórios, a capacidade de estimular novas dinâmicas de produção de conteúdos culturais e novos modos de acesso à cultura e a transformação do público, que ainda é a referência da fase "clássica" da indústria cultural, em praticante, definindo assim um novo, difuso e cada vez mais múltiplo conceito de autoria e de propriedade intelectual.

A política de controle e instrumentalização do fenómeno cultural ao nível local, ignora também a visão proposta pela Agenda 21 da Cultura (A21C), que encoraja as cidades a elaborar estratégias culturais a longo prazo e convida o sistema cultural a influenciar os principais instrumentos de planeamento urbano.

             

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