A guerra de Marie Colvin está nos cinemas para nos obrigar a ver

O filme chama-se Uma Guerra Pessoal. A guerra é a da jornalista que viveu a correr para lugares de onde outros querem fugir – dela e daqueles a quem nunca parou de dar voz. Até ser apanhada por Assad, há seis anos, em Homs.

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Marie Colvin na praça Tahri, no Cairo, em Fevereiro de 2011 EPA

Hudheida, com 600 mil pessoas encurraladas num Iémen a morrer. Campos de deslocados no Nordeste da Nigéria, onde aos confrontos entre o Exército e o Boko Haram se juntou a cólera e meningite. Noroeste e Sudoeste dos Camarões, as duas regiões anglófonas do país em que protestos separatistas se transformaram numa guerra que já matou 500 pessoas e obrigou 400 mil a fugirem.

Se pudesse, Marie Colvin estaria com grande probabilidade num destes lugares. O Iémen vive a maior crise humanitária do mundo, a guerra étnica nos Camarões é talvez o conflito menos noticiados da actualidade. As três crises arrasam áreas de acesso difícil e de onde os civis têm muita dificuldade em sair. Como acontecia em Fevereiro de 2012 no bairro de Bab al-Amr, em Homs, cercado pelas forças de Bashar al-Assad e debaixo de fogo permanente.

“Esta é a realidade. São 28 mil civis, homens, mulheres e criança escondidos e indefesos. Aquele pequeno bebé é uma das duas crianças que morreram hoje […]. Não há alvos militares aqui [...].É uma mentira absoluta que não estejam a bombardear civis. O Exército sírio está a atacar civis esfomeados e com frio.” Vemos imagens de um menino de dois anos a morrer depois de ter sido atingido por estilhaços no peito e ouvimos Marie, em directo para a CNN. No testemunho à BBC, a jornalista compara Homs com Srebrenica, lembrando que o mundo disse que “nunca mais seria possível”.

Marie fez o que muito poucos tentaram na altura – entrar em Homs. Depois, o que quase ninguém ousou fazer – ficar.

Houve uma evacuação do centro de media improvisado onde se encontrava com o fotógrafo Paul Conroy. Paul fez o que pôde para convencer Marie a sair. Há gritos a avisar para um ataque iminente e parece que todos vão embora, a correr pelo mesmo sistema de túneis subterrâneos por onde tinham entrado. Até que Marie pára. “Tenho de voltar ao hospital, conseguir mais imagens.” Paul diz que ficar é morrer. Ela volta para trás, ele vai com ela.

Isto é o que acontece no filme Uma Guerra Pessoal; na realidade, eles chegaram mesmo a sair e foi quando se percebeu que não tinha havido nenhum ataque contra o centro que Marie quis voltar. Paul, o fotógrafo com que trabalhava desde a invasão do Iraque, em 2003, teve “um mau pressentimento” e tentou dissuadi-la.

“Vivemos com o medo de um massacre”, é o título do último artigo que enviou para o seu jornal de sempre, o Sunday Times, a 20 de Fevereiro. No filme Uma Guerra Pessoal vemos e ouvimos as vozes das mulheres sírias que Marie cita nesse texto.

A reportagem onde ficamos a conhecer Noor, de 20 anos, que conta como perdeu o marido e uma filha e se agarra à pequena Mimi, de três anos, ao mesmo tempo que Mohamed, o filho de cinco, não lhe larga a abaya, foi a última que Marie assinou.

“Seria errado chamar a isto guerra. É um cerco medieval e uma chacina”, diria dias depois, em Londres, Paul, sobrevivente do ataque que matou Marie e o fotógrafo francês Rémi Ochlik (28 anos) a 22 de Fevereiro.

A nova-iorquina que passou a maior parte da vida em Londres foi exemplo para gerações de jornalistas em diferentes partes do mundo. Ia onde era preciso. Escrevia com todas as letras o que via e ouvir.

À maior audiência

Marie gostaria de ver mulheres sírias nos ecrãs de cinemas em todo o mundo. São sírias as mulheres que aparecem no filme sobre a sua vida que estreia esta quinta-feira em Portugal. As suas tragédias e lágrimas são verdadeiras, garante o realizador Matthew Heineman, que filmou as cenas de guerra na Jordânia, com refugiados sírios e iraquianos. Afinal, era por causa das pessoas que Marie corria na direcção de onde quase todos fogem – um filme sobre ela que não desse voz às vítimas não lhe faria justiça.

Em Homs, contou depois o colega e amigo Bill Neely, da ITV, Marie estava frustrada porque o texto só podia ser lido por assinantes e não podia estar disponível na Internet, e ela “queria que as suas palavras da Síria chegassem à maior audiência possível”.

Talvez tenha sido por isso que voltou atrás e insistiu em falar para televisões. Amigos e colegas veteranos jornalistas de conflito passaram muito tempo a questionar-se sobre essa decisão. Marie tinha 56 anos e um problema de alcoolismo alimentado pelo stress pós-traumático que nunca tratou. Talvez tivesse perdido a capacidade para avaliar os riscos. Nunca saberemos. Há o azar e há a teimosia. Marie foi morta por ambos. Ou então por se ter convencido que poderia realmente salvar aquelas pessoas.

Marie foi morta por Bashar Al-Assad, que não terá perdoado a crueza da sua descrição. Afinal, Marie não era uma repórter qualquer. Era muito respeitada. Marie foi morta por Assad e pela impunidade que o mundo lhe permitiu.

A morte do “invencível”

Líbia em revolta contra Muammar Kadhaffi, hotel onde se reúnem os jornalistas: alguns passam a carregar os corpos de outros. “Ele era sempre o primeiro a chegar e o último a sair”, diz Marie. No filme “ele” é Norm Coburn, o amigo fotojornalista. É uma personagem compósita: inspirada em Tim Hetherington, o britânico que morreu ao fotografar a frente de combate em Misurata. “Ele” é um pouco de todos os colegas que Marie viu morrer em 30 anos.

“Em Timor ele fez-me uma T-shirt que dizia ‘Sou jornalista, não dispare’. Ele era invencível”, diz uma Marie arrasada a Paul. “Há jornalistas ousados e há jornalistas velhos. Não há jornalistas velhos e ousados”, responde-lhe Paul. “Tu sabes isso.”

Claro que “ele” não era invencível tal como Marie não era imortal.

Afinal, “é preciso ser completamente doido varrido” para fazer o que ela fazia, diz-lhe no filme a personagem do editor de Internacional do Sunday Times. Ela estava doente mas não era “doida varrida”. Se fosse não tinha pesadelos nem bebia demasiado nem se questionava sobre o que fazia.

Ela era humana, muito humana, como tem de ser alguém que consegue que outros lhe abram o coração e a alma e contem das suas tragédias. Adorava divertir-se, “tinha sentido de humor e uma imensa alegria de viver”, descreveu o seu verdadeiro editor, John Witherow. Faz sentido, é difícil ter-se empatia sem humor. Como é impossível passar num checkpoint de soldados de Saddan Hussein fingindo ser enfermeira e “provando-o” com o cartão do ginásio sem frieza e coragem. E como riem Marie e Paul e Mourad, o tradutor iraquiano que os acompanha, passado o perigo.

"Bravura não é ter medo de ter medo”, afirmou um dia Marie.

“Ser testemunha”

“Eu vejo estas coisas para que tu não tenhas de as ver”, grita a personagem na conversa com o editor. É isso que faz um jornalista que vai a zonas em conflito, vê tudo e depois escolhe o que partilha. Nas palavras de Colvin, a jornalista, não a personagem, “cobrir uma guerra significa ir a sítios devastados pelo caos, pela destruição e pela morte, e tentar ser testemunha”, e, “sim, correr riscos”.

Nas palavras da jornalista que abrem e fecham o filme, num depoimento em que lhe perguntam como quer ser lembrada: “Bem, penso que [era bom] olhar para trás e dizer que me preocupei o suficiente para ir a estes lugares e, de alguma forma, escrever algo que possa fazer com que outra pessoa se preocupe tanto como eu na altura”.

No caso de Marie, estes “lugares” podiam ser aqueles onde mais ninguém ia. Como em 2001, no Sri Lanka, quando insistiu em entrar no território controlado pela guerrilha dos Tigres Tâmiles, onde não havia ocidentais. Não o fez para cobrir confrontos mas a fome e a doença que aniquilavam os civis tâmiles. Os 48 km que percorreu a pé pela selva para evitar as tropas do Governo não foram suficientes: atingida no rosto, perdeu a visão do olho esquerdo.

A pala negra que passou a usar só fez crescer o mito da jornalista guerreira, nunca fanfarrona mas absolutamente determinada. A nova-iorquina (“da parte pobre” de Long Island, diz no filme a Paul) cujo instinto a levava a conseguir histórias que outros não procuraram por não acreditarem ou julgarem que não valia a pena.

Marie Colvin foi uma jornalista excepcional. Hoje, teria 62 anos. Com ou sem pala, armada de caderno, caneta, telefone e computador, continuaria certamente a trabalhar. Se não estivesse no Iémen, na Nigéria ou nos Camarões estaria provavelmente a tentar entrar em Idlib, a grande cidade que ainda escapa a Assad e para onde fugiram mais de 1,5 milhões sírios.

“Estas pessoas não têm voz”, disse Marie, anos antes de morrer. “Sinto que tenho uma responsabilidade moral, que seria cobarde ignorá-las. Se os jornalistas têm uma hipótese de salvar as suas vidas devem fazê-lo.” Muito poucos têm a certeza que o fizeram, como Marie. Foi em 1999, quando decidiu ficar no complexo de Díli onde a ONU ameaçava abandonar 1500 civis aos quais prometera protecção. O resto é uma tentativa permanente de chegar a pessoas suficientes para que alguém, em algum lugar, decida fazer alguma coisa. E sim, isso pode tornar-se numa “guerra pessoal”.

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