Um antepassado

Isaac Abravanel, ao fugir por razões políticas, acabou por preceder numa década e pouco o início da fuga em massa dos judeus portugueses que foram expulsos ou perseguidos por razões religiosas.

Na noite de 31 de maio de 1483 um homem adentrou-se pelo Alentejo até à fronteira com Castela e hesitou se deveria atravessá-la para abandonar o país onde tinha nascido, sido feliz e não pouco influente e poderoso. Já era o segundo dia que hesitava.

Na véspera tinha sido chamado a Évora para ver el-rei Dom João II. Mas tinha boas razões para duvidar que o rei o quisesse apenas ver, ou sequer conversar com ele. Tinham sido agitadas as últimas semanas e meses na política do reino. Os últimos anos, até. Primeiro, o rei anterior, Afonso V, arruinado pelas suas guerras para conquistar o trono de Castela e tentar, quem sabe, unificar as Espanhas sob a preponderância de Portugal, desistira de ser rei, e depois mudara de ideias. Ainda por cima, tudo isso acontecera em França, onde o rei fora pedir apoio e, desiludido, tinha decidido abdicar, transformar-se em simples peregrino, e desaparecer a caminho de Jerusalém. O seu séquito conseguiu encontrá-lo já na estrada e convencê-lo a regressar a Portugal, onde o seu filho já tinha sido entretanto coroado. Dom João II devolveu a coroa ao pai, e só a voltou a receber após a morte deste, mas numa situação em que os senhores feudais governavam os seus territórios praticamente sozinhos e conspiravam contra a coroa. Ou pelo menos assim acreditava o rei.

Ir ver o rei Dom João II por esses dias, quando se era secretário do Duque de Bragança - como era o caso - poderia significar não se ver mais nada. Para mais quando se recebe a notícia de que o Duque de Bragança foi preso a 29 de maio. Por isso o nosso homem não foi a Évora a 30 de maio, como combinado, e agora já estava em falta para com o rei. Desceu para Sul, provavelmente até Barrancos. Hesitou uma última vez. E atravessou a fronteira. Fez bem. O Duque de Bragança foi degolado publicamente em Évora no mês seguinte. O seu sucessor na contestação ao rei, o Duque de Viseu, atraído a Palmela e assassinado, talvez apunhalado pelo próprio rei, no ano seguinte. Escapou o Duque do Beja, filho do anterior, por ser demasiado novo, e sobrinho da rainha.

E escapou também o homem com que começámos esta crónica. O seu nome era Isaac Abravanel e nascera em Lisboa 46 anos antes. Era judeu e um dos líderes da sua comunidade. O Portugal de Isaac Abravanel ainda era um reino multirreligioso; a uma maioria cristã acrescentava-se uma muito numerosa minoria judaica e ainda os vestígios, mais localizados, de populações muçulmanas. Isto foi antes da expulsão dos judeus portugueses, da invenção dos cristãos-novos e cristãos-velhos, da introdução da Inquisição. Mas não por muito tempo: Isaac Abravanel, ao fugir por razões políticas, acabou por preceder numa década e pouco o início da fuga em massa dos judeus portugueses que foram expulsos ou perseguidos por razões religiosas.

Por isso, Isaac, que era filósofo, um dos últimos grandes filósofos medievais, e administrador financeiro, teve de se tornar também líder político. Depois de um período com Fernando de Aragão, nova fuga, desta vez para Nápoles, para onde levou em segurança centenas de famílias de judeus portugueses e espanhóis. Depois Veneza, onde foi conselheiro da Sereníssima República e intermediário de negócios com o novo rei de Portugal, Dom Manuel I (que era o jovem duque de Beja que anos antes tinha escapado à fúria de Dom João II, e mantinha laços de amizade, agora à distância, com Isaac Abravanel).

A certa altura, cansado das pressões a que era submetido pelas suas atividades de estadista, Isaac Abravanel parou numa pequena ilha do Adriático, chamada Monopoli. Viveu aí os melhores anos da sua vida, a pensar no fim do mundo. Como grande parte da sua geração - de judeus, cristãos ou muçulmanos - Isaac Abravanel acreditava que o fim do mundo estava muito próximo e via essa probabilidade, quase uma certeza, com um certo alívio. Talvez assim acabassem as suas tribulações e as do seu povo. Talvez essas tribulações explicassem porque tinha ele passado de jovem filósofo otimista e aristotélico, ainda em Lisboa, a maduro teólogo messiânico, apocalíptico, e pessimista, no seu longo exílio.

Isaac Abravanel é um nosso antepassado. As forças combinadas de séculos de Inquisição pré-moderna e de nacionalismo moderno obscurecem o facto de que Portugal não foi durante muito tempo homogéneo, pelo menos do ponto de vista religioso. E hoje, se quisermos entender a história de Portugal, teremos de saber recuperar — não só entre historiadores, mas também entre o público mais lato — o contributo de judeus e muçulmanos para a nossa história, investigá-lo, divulgá-lo e ensiná-lo.

Isaac Abravanel nunca conseguiu voltar a Portugal, nem a Lisboa. Morreu em Veneza, provavelmente em novembro de 1508, há 510 anos, e está enterrado em Pádua. Não só o mundo não acabou, como de certa forma estava a começar de novo; quem o percebeu foi a geração seguinte, de gente como Erasmo de Roterdão e Tomás Morus. Mas essa é outra história.

(Hoje, em Cascais, no Museu dos Condes de Castro Guimarães, às 18h30, o Presidente da República lançará o livro Vozes Judaicas de Portugal, de Shlomo Pereira e Eli Rosenfeld, principalmente baseado em comentários religiosos aos sermões de Isaac Abravanel. Que esse gesto possa ajudar a recuperar um pouco da história esquecida deste importante filósofo, estadista e teólogo português de religião judaica.)

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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