Renault mantém Ghosn nos cargos mas entrega o poder ao número dois

Grupo francês designa Thierry Bolloré para vice-CEO e pede à Nissan informações sobre investigação a Carlos Ghosn. Paris queria a saída de Ghosn.

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Thierry Bolloré integra a equipa de Ghosn como responsável pelas operações Reuters/REGIS DUVIGNAU

Carlos Ghosn vai continuar por enquanto como chairman e presidente-executivo (CEO) do grupo Renault. Mas o poder foi entregue, de forma transitória, ao número dois do grupo, Thierry Bolloré, que passa a ser vice-CEO.

A decisão foi tomada esta noite, na sede do grupo em França, onde a administração se reuniu para responder à detenção de Carlos Ghosn, na segunda-feira, em Tóquio, por suspeitas de fraude fiscal e de desvio de dinheiro da empresa para benefício pessoal.

"O sr. Ghosn, temporariamente incapacitado [o gestor continua detido], mantém-se chairman e CEO. O conselho de administração decidiu nomear Thierry Bolloré, numa base temporária, vice-CEO. Por isso, vai liderar a equipa de gestão do grupo, com os mesmos poderes de Carlos Ghosn", lê-se no comunicado divulgado pelo fabricante francês, esta noite.

Bolloré chegou à Renault em 2012 e era apontado como sucessor de Ghosn para 2022. No início de 2018, os franceses tinham reconduzido Ghosn para mais um mandato de quatro anos.

A reunião foi conduzida pelo administrador não executivo Philippe Lagayette, segundo a mesma nota enviada aos media. "Nesta altura, a administração não pode tecer comentários em relação às provas que supostamente foram reunidas contra o sr. Ghosn pela Nissan e pelas autoridades judiciais japonesas", diz o grupo francês.

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Ghosn (à esquerda) e Philippe Lagayette, que o substitui no conselho de administração Reuters

Com esta decisão, a Renault segura o homem que liderou o grupo nos últimos 19 anos e contraria o parceiro de aliança, a Nissan, que já anunciou a vontade de destituí-lo na quinta-feira do cargo de chairman do fabricante nipónico.

Ao mesmo tempo, resiste também ao apelo do Governo francês, cujo ministro da Economia e das Finanças, Bruno Le Maire, tinha afirmado de manhã que Ghosn já não reunia condições para se manter à frente das empresas que constituem a maior aliança actual do mundo automóvel.

Enquanto se mantiver esta situação transitória, o conselho de administração será gerido por Philippe Lagayette, diz a Renault que, no comunicado, divulga também um pedido ao parceiro de aliança: "A administração decidiu pedir à Nissan, com base nos princípios da transparência, da confiança e do respeito mútuo, inscritos na Carta da Aliança, que forneça todas as informações em sua posse ou que surjam da investigação interna relacionada com o sr. Ghosn."

Franceses sem pressa, japoneses contra fusão

Em momentos de crise, a linguagem é determinante e a escolha das palavras deste comunicado não parecem inocentes. Ficou claro, desde o primeiro momento, que os japoneses da Nissan viram a detenção de Ghosn como um problema legal mas também uma oportunidade para censurar as opções de gestão do chairman escolhido pelos franceses, criticando também o modelo, nomeadamente a concentração de poder num só executivo.

O CEO dos nipónicos, Hiroto Saikawa, quase transformou a conferência de imprensa num manifesto anti-Ghosn e confirmou, logo ali, o que a empresa assumira no primeiro comunicado após a detenção de Ghosn no aeroporto de Haneda: a vontade de o destituir ainda esta semana.

Pelo teor do comunicado da Renault, no grupo francês — que detém 43,4% da Nissan (que por sua vez controla 15% do capital do parceiro), segundo o acordo de aliança forjado há quase duas décadas — não parece haver esse sentido de urgência. E, a fazer fé no que noticia esta noite o Financial Times, o confronto entre as partes já vinha de longe.

Segundo o jornal londrino, Ghosn estaria a preparar, há meses, uma fusão entre as duas empresas. Este plano, que era anterior à detenção de Ghosn, terá sido confirmado ao Financial Times por três fontes distintas (que o jornal não identifica mas diz serem da administração da Nissan), mas esbarrava na resistência dos nipónicos, que procuravam formas de bloquear uma fusão.

O que se sabe é que muitos analistas, e o próprio presidente da Mitsubishi (que passou a integrar a aliança em 2016), consideram que o acordo entre franceses e japoneses dificilmente sobreviveria sem Ghosn na liderança. E, segundo o Financial Times, a ideia da fusão (que é antiga mas mereceu sempre a oposição da Nissan) teria como objectivo dar um carácter "irreversível" à ligação entre franceses e japoneses.

A aliança que uniu a Renault e a Nissan dá mais poderes aos franceses. Os 15% de acções na mão dos japoneses vêm sem direitos de voto. Porém, de um ponto de vista operacional, os japoneses consideram o parceiro europeu o elo mais fraco desta parceria, que permitiu ao líder de vendas em Portugal obter tecnologia para alavancar a sua competitividade até ao ponto de disputar a liderança mundial com Volkswagen e Toyota.

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Reuters

No caso que levou à detenção de Ghosn, as investigações começaram com uma denúncia anónima na Nissan, cujo presidente garantiu que ninguém sabia de nada.

O jornal Nikkei, também com base em fontes não identificadas, noticiou no dia seguinte à detenção que o empresário francês usara 17,8 milhões de euros de uma subsidiária criada na Holanda (com a missão de financiar startups) para pagar casas de luxo em Beirute e Rio de Janeiro.

Os pagamentos incluíam as despesas de manutenção e restauro, em transacções supervisionadas por Greg Kelly, número dois de Ghosn na aliança e que também foi detido segunda-feira.

Os procuradores que investigam as denúncias acusam Ghosn de ter ocultado 44 milhões de dólares ao fisco, cerca de metade do rendimento obtido entre 2010 e 2015 (88 milhões de dólares) e de usar dinheiro da empresa em benefício próprio. 

Mesmo detido, Ghosn continua a merecer o apoio dos franceses. Pelo menos por agora. Para o jornal Nikkeio "escândalo Ghosn" revela a falta de controlo na gestão da Nissan sob liderança do patrão francês, que gere a Renault desde 2005.

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