A liberalização da estupidez

As redes sociais estão entupidas de lixo, que todos nós produzimos e não contribuímos para limpar. Abundam notícias falsas, que só por si são uma nova designação para as mentiras manipuladoras.

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Paul Schafer/Unsplash

Ainda sou do tempo em que a ignorância gerava vergonha. Por isso, sempre que escrevo algo fico com receio de ser apenas mais um idiota, que sofre do efeito Dunning-Kruger, em que o nível da minha ignorância me impede de ver realmente quão ignorante posso eventualmente estar a ser. O que me leva a suplantar esses receios é ter a certeza de que, apesar dos riscos, é uma forma legítima de aprender e testar o que supostamente penso saber.

Umberto Eco dizia, para escândalo de muitos nós, que a Internet iria dar voz aos idiotas. Na altura pareceu-me exagerado e um elitismo bafiento, porque todos poderiam aprender enquanto participavam activamente na rede, pois ficariam sujeitos à superior informação e argumentação alheia. Infelizmente essa visão optimista está cada vez mais difícil de defender.

Há uns anos prevalecia a ideia de que a Internet, e a desmaterialização da informação à escala global, daria origem a uma nova era de conhecimento generalizado, acessível a todos. As vantagens foram enormes mas, em simultâneo, surgiram novas formas de manipulação, acessíveis a todos. Obviamente que antigamente muito se produzia de manipulador, ainda que só o fizesse quem pertencesse a uma certa elite intelectual. A restante população simplesmente não podia aceder a ferramentas massivas de grande alcance comunicativo. O acesso ao conhecimento generalizou-se, mas a sua compreensão aparenta não ter acompanhado esse crescimento.

Neste momento, as redes sociais estão entupidas de lixo, que todos nós produzimos e não contribuímos para limpar. Abundam notícias falsas, que só por si são uma nova designação para as mentiras manipuladoras. O pior disto é que agora ganham força mentiras tão mal construídas que denotam o reduzido poder de crítica e informação do público a quem são dirigidas. Coisas como o nazismo não é fascismo, a terra é plana, a negação da importância da vacinação e um sem fim de idiotices apontam para uma era de estupidificação e de facilidade em promover absurdos facilmente desmontados.

A herança social trouxe-nos a liberdade que, conjugada com as tecnologias de informação e comunicação, permitem o activíssimo direccionado para o que quisermos, para o bem e para o mal. Nada nos impede de comunicar a nossa ignorância ao mundo inteiro. Não haveria problema nenhum se ninguém ligasse, mas não estão a surgir os filtros de sabedoria que esperaríamos serem produzidos pela própria comunidade, pelo menos não na escala necessária. Hoje podemos ser idiotas com orgulho, ignorantes sem receio e ser portadores de uma grande estupidez e poder em simultâneo. As elites demitiram-se ou dominam a sociedade de outro modo, mais oculto e estupidificante? Há quem diga até, como Achille Mbembe, que o humanismo já morreu. Ou que a competência também já tem os dias contados, como defende Tom Nichols. Os relativismos tendem a nivelar tudo e o domínio do politicamente correcto em tem ajudado. A qualidade e a falta dela passaram a valer o mesmo?

Estão a surgir ferramentas e aplicações para validarmos informações. Mas quem está mais sujeito a imbecilidade de algumas noticias, ou meras publicações de terceiros, irá mesmo fazer a verificação? Uma esmagadora maioria da informação é partilhada em pequenas frases e imagens, longe dos grandes textos argumentativos. Como combater isto?

Quando se definiram os modelos de democracia vigentes as sociedades eram muito menos complexas que hoje, já o dizia Norberto Bobbio. Então precisaremos de outros modelos democráticos para fazer face ao flagelo da estupidez? Estará a democracia em risco?

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