O fim anunciado das reformas antecipadas

De forma sorrateira, esta norma do OE implica o fim do regime de flexibilização para a esmagadora maioria dos trabalhadores.

Apresentado como um prémio às longas carreiras contributivas, a proposta de criação de um novo regime de reforma antecipada por flexibilização da idade contida no Orçamento do Estado para 2019 traduz, na prática, e pasme-se, o fim das reformas antecipadas por idade para a esmagadora maioria dos trabalhadores portugueses, se exceptuarmos o regime de pensão antecipada por desemprego de longa duração e os residuais regimes especiais de antecipação ligados ao exercício de actividade em determinadas profissões. Descontando por ora as não menos importantes questões de falta de transparência, ética e verdade no exercício da actividade política, que têm destruído ao longo de décadas a confiança no contrato intergeracional, centremo-nos na compreensão do novo regime e nas suas implicações. Para tal, importa perceber primeiro que regras estão em vigor à data destes escritos. Durante muitos anos, a regra aplicável no regime de flexibilização por idade permitia a reforma antecipada a quem aos 55 anos de idade já tivesse 30 anos de carreira. Este regime foi suspenso em 2012, como resultado do Programa de Ajustamento Económico e Financeiro (PAEF) imposto pela troika, sendo apenas retomado em 2015. Mas em 2016, pressionado pelo impacto financeiro do regime, o actual Governo resolveu voltar a suspendê-lo.

O regime em vigor em 2018 possibilita a antecipação da idade normal de acesso à pensão de velhice (66 anos e quatro meses), com penalização da pensão de velhice inicial e subsequente, aos beneficiários com idade igual ou superior a 60 anos e 40 ou mais anos de carreira contributiva. Se, na data do pedido, o beneficiário tiver carreira contributiva superior a 40 anos, o número de meses de antecipação a considerar é reduzido em quatro meses por cada ano que exceda os 40. Por exemplo, para um trabalhador com 43 anos de carreira, a sua idade normal de acesso à pensão de velhice é de 65 anos e quatro meses em 2018, e essa será a idade a considerar para efeitos de cálculo dos meses de antecipação e respectiva penalização. Esta penalização é dupla: -0,5% por cada mês de antecipação (6% ao ano), acrescida do factor de sustentabilidade (melhor seria chamar-lhe factor demográfico de corte das pensões antecipadas), no valor de 14,5% este ano. A única escapatória a esta dupla penalização é a que decorre do regime especial de pensão antecipada para carreiras muito longas, que permite a quem tem idade igual ou superior a 60 anos e, pelo menos, 48 anos de contribuições, ou a quem tem idade igual ou superior a 60 anos e 46 ou mais anos de contribuições e, cumulativamente, o primeiro desconto feito antes dos 15 anos de idade, a reforma sem penalização.

O quadro abaixo ilustra, para diferentes carreiras contributivas e idade do pensionista à data do requerimento, o valor da dupla penalização da pensão de velhice a aplicar em 2019 com as actuais regras. Por exemplo, um trabalhador com 61 anos de idade e 40 de carreira contributiva sofre um corte de 42,70% na sua pensão de velhice se decidir reformar-se antecipadamente.

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A proposta de OE 2019 traz consigo um novo regime de reforma antecipada por flexibilização da idade que vem alterar completamente a condição de acesso, passando a exigir para eliminar a dupla tributação que aos 60 anos os trabalhadores já tenham, pelo menos, 40 anos de carreira contributiva. A proposta prevê a sua introdução faseada, sendo aplicável a partir de Janeiro de 2019 aos trabalhadores com 63 ou mais anos de idade e, a partir de Outubro, para todos os pensionistas com 60 ou mais anos, desde que cumprida a condição de acesso.

Contrariamente ao regime em vigor, que prevê que, independentemente da idade do trabalhador, uma vez completados os 40 anos de descontos o regime de flexibilização está acessível, o OE impede o acesso ao regime a todos os que aos 60 anos não preencham o requisito de acesso, mesmo que o venham a preencher dias ou meses depois e até apresentem carreiras muito longas. De forma sorrateira, esta norma implica na prática o fim do regime de flexibilização para a esmagadora maioria dos trabalhadores. Com efeito, para cumprir a nova condição de acesso, será necessário começar antes dos 20 anos e não ter qualquer interrupção na carreira contributiva ao longo da vida (períodos de desemprego, doença, paternidade não abrangidos pelo regime de equiparação a contribuições), um registo praticamente impossível dadas as actuais e futuras características de mercado de trabalho, com maior precariedade e peso crescente dos contratos atípicos. Esta nova condição de acesso cria, imagine-se, um incentivo ao abandono do percurso escolar e formativo para antecipar a entrada no mercado de trabalho. Como a praxis é tão diferente do discurso.

Para se ter uma correcta avaliação do impacto da medida, o quadro abaixo calcula o número de anos e meses de trabalho adicionais (em comparação com o que resultaria das regras actuais) que será necessário para que um trabalhador se reforme sem penalização. A título de exemplo, um trabalhador com 61 anos de idade e 40 de carreira contributiva terá que trabalhar mais quatro anos e cinco meses do que com as regras actuais. Escusado será dizer a quão injusto intra e intergeracional é este novo regime, que demonstra bem o seu desprezo pelos princípios de justiça redistributiva. O que tem o Tribunal Constitucional a dizer sobre esta matéria? O silêncio perante a violação dos mais basilares direitos, liberdades e garantias é perturbador.

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Mas, afinal, qual é a justificação para o novo regime? Nas palavras dos seus proponentes, “para garantir a sustentabilidade da Segurança Social (...) seria necessário aumentar a TSU em cinco pontos percentuais”. Será que escutámos bem? Durante os últimos anos sempre ouvimos os responsáveis políticos negar e ocultar o problema de sustentabilidade da Segurança Social, que com crescimento económico o sistema voltaria ao equilíbrio, que o problema era ora do desemprego ora da produtividade, que até há excedente orçamental nas contas da Segurança Social, que os estudos independentes publicados estavam errados (vide GEP-MTSS, 2015). O desconhecimento sobre o significado de conceitos tão elementares como os de sustentabilidade, equidade e adequação num sistema de pensões são evidentes.

Mas vejamos então se, de facto, a aprovação desta norma do OE contribuiria para a sustentabilidade do sistema. Com o actual regime, os trabalhadores podem reformar-se antecipadamente mas com elevada penalização, conforme vimos acima, mas vão auferir a pensão durante mais anos. Com o novo regime, os trabalhadores vão ter que se reformar substancialmente mais tarde, contribuir durante mais anos e usufruir por isso menos da sua pensão mas vão, em contrapartida, auferir uma pensão mensal mais elevada.

Tomando como exemplo um trabalhador com 61 anos de idade e 40 de carreira contributiva, se considerarmos a esperança de vida remanescente e calcularmos o valor actual de todas as pensões de velhice a receber após a reforma (conceito de pension wealth) e deduzirmos o valor das contribuições sociais adicionais pagas, demonstra-se actuarialmente que a aprovação desta norma do OE agrava em 40,6% a sustentabilidade do sistema. O agravamento é ligeiramente menor para idades de reforma mais próximas da idade normal mas sempre prejudicial à sustentabilidade do sistema. Ficou confuso? A medida destinada a melhorar a sustentabilidade do sistema agrava o seu já elevado défice anual (superior a 6000 milhões de euros) e dívida implícita? Como justificar então a medida? Não foram feitos cálculos actuariais? Onde estão os prometidos estudos?

Num país em que as tendências demográficas justificavam a adopção de fortes medidas de incentivo ao prolongamento da vida activa, por aposta na melhoria da qualificação dos trabalhadores ao longo da vida, pela criação de incentivos no sistema de pensões ao adiamento da entrada na reforma, entre estes o principal a criação de um mecanismo que assegure a equidade actuarial entre todos os trabalhadores, e políticas de saúde que garantam que a esperança de vida com saúde acompanha a subida da esperança de vida, assistimos com tristeza a mais uma oportunidade perdida. Não teremos outra.

Cidadania Social – Associação para a Intervenção e Reflexão de Políticas Sociais – www.cidadaniasocial.pt

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