Estas estranhas anomalias

Os media portugueses inventaram o estatuto e até a profissão de “comentador” que bota “opinião” em regime de concessão...

O jornalismo português sofre de enfermidades que o impedem de se situar ao nível do que de melhor se faz no resto da Europa. E uma dessas enfermidades é a que reúne duas estranhas anomalias: a superabundância dos “comentadores” todo-o-terreno em regime de concessão e a entronização de políticos profissionais como “comentadores”.

Os “comentadores” titulares (“residentes”!) dos media portugueses são de facto uma espécie de concessionários de espaço em papel ou em linha, ou de tempo de antena. Espaço com periodicidade e enquadramento preestabelecidos. E até, pasme-se, com variações de “escrita” autorizadas e adornos da intervenção do “comentador” estabelecidos por este...

Nesse espaço concessionado, o “comentador” escreve ou fala sobre o que lhe apetece. Sem sequer se concertar previamente com a redação que o acolhe. Ou então, no audiovisual, é-lhe anunciado o tema da emissão em que vai afrontar outros “comentadores” (quase sempre os mesmos). Uma confrontação numa espécie de pugilato em que procurará ocupar o máximo de tempo e impedir que os adversários falem, cobrindo com as suas intervenções as tomadas de palavra destes...

Mas o que há ainda de mais trágico nesta conceção do “comentário” é que os “residentes” são-no porque se autoproclamam competentes em tudo. E quando abordam temas que o leitor, ouvinte, espetador ou internauta conhece, é manifesto que a ignorância dos ditos “comentadores” é por vezes incomensurável. Só que são “bons clientes”, como se diz nos media francófonos: falam bem e têm garbo, possam embora dizer banalidades para encher o espaço ou o tempo que lhes é concedido...

Como se todas estas insuficiências não bastassem, para terem audiência e suscitarem reações nas edições em linha ou nas chamadas “redes sociais”, os “comentadores” recorrem à agressividade. Atacando rivais de media concorrentes. Atacando outros “comentadores” do media de que são “residentes”. Ou, sublime perfídia, criticando e mesmo chantageando a direção do media que lhes paga como “residentes”. Quando não insultam gratuitamente uns e outros, ou brincam aos irresponsáveis engraçadinhos...

Da “concessão” que lhe foi atribuída, muitos “comentadores” aproveitam para fazer a própria promoção (profissional ou narcísica) ou para ganhar mais ou menos faustosamente a vida. Mais do que isso: a falta de escrúpulos reinando, fazem referência às suas próprias vidas privadas e atividades profissionais ou a funções em que estão implicados. Enquanto vão “comentarizando” em vários media, de modo a ganharem mais notoriedade e dinheiro, provocando uma inacreditável concentração dos “fazedores de opinião”...

Mas o requinte máximo deste “comentarismo” é quando os profissionais da política são entronizados “comentadores”, com rubricas permanentes na imprensa, na rádio, na televisão ou em linha. Como se um profissional da política fosse naturalmente capaz de se alhear dos seus interesses partidários, tomar as devidas distâncias e analisar serenamente a atualidade nacional, internacional ou estrangeira.

A grande confusão nos media portugueses é que tudo é considerado “opinião”. Quando há uma diferença fundamental a fazer entre a “tribuna” de opinião e a “análise” de atualidade. Em princípio, a “tribuna” não tem titulares permanentes. É antes um espaço aberto em que personalidades da vida política, social, económica, cultural intervêm quando consideram deverem tomar posição sobre temas de atualidade e explicitar esta posição, propondo a um media uma contribuição puramente pontual.

A “análise” constitui ao contrário uma rubrica regular (e até mesmo diária), que surge em função da atualidade ou de maneira periódica (muitas vezes semanal). Nela, jornalistas seniores do próprio media, incontestáveis especialistas do assunto, ou personalidades exteriores de reconhecida autoridade na matéria, propõem perspetivações de um tema ou situação. Deixando os leitores, ouvintes, espectadores ou internautas tirar as próprias conclusões, reformulando eventualmente as suas próprias opiniões.

O que se faz na grande maioria dos media de informação portugueses pouco ou nada tem a ver com os géneros nobres do jornalismo que são, nomeadamente, a crónica, a análise, a entrevista, o debate. Antes pelo contrário, dizem sobretudo respeito a uma “recreatividade” que em nada contribui para uma informação jornalística de qualidade...

Professor emérito de Informação e Comunicação da Université Libre de Bruxelles, autor do livro Teoria da Informação Jornalística (Almedina)

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

Sugerir correcção
Ler 2 comentários