Os direitos das palavras: “fascista”

Nunca houve tantos antifascistas desde que o fascismo desapareceu em 1945. Hoje, o palavrão “fascista” é um mero insulto e serve para obscurecer os populismos e a crise da democracia.

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Publiquei há anos uma crónica sobre “Os direitos das palavras”, prevenindo contra os abusos. “Se com as palavras pensamos e por elas nos entendemos, necessário é reconhecer-lhes alguns direitos, designadamente o de não serem objecto de abuso, de forma substantiva ou adjectiva. E reconhecer mesmo, a algumas delas, o direito à sua particular identidade: são únicas por designarem coisas únicas” (PÚBLICO, 25/9/1996).

Umas vezes, abusamos das palavras através de um preguiçoso expediente retórico para exprimir sentimentos fortes, fazer crescer a indignação e empolar acontecimentos. Em linguagem jornalística, uma matança facilmente se torna num massacre (matar selvaticamente e em massa pessoas indefesas), tal como um massacre rapidamente passa a genocídio (extermínio metódico de um grupo humano). Outras vezes, por ignorância. Outras ainda, no caso da palavra “fascista”, como mero instrumento para insultar o adversário.

Genocídios e Holocausto

Referia, em 1996, alguns exemplos. O genocídio dos tutsis pelos hutus, em 1994, não deixa dúvidas. Houve o desígnio de exterminar toda uma comunidade ou etnia. No entanto, a aplicação da mesma palavra — genocídio — aos posteriores massacres de hutus por tutsis era abusiva, não pela exponencial diferença dos números, mas pela distinta natureza das coisas: não havia da parte das milícias tutsis o desígnio de eliminação da etnia hutu, mas vingança. A legítima vontade de exprimir o horror não justifica a falta de rigor nas palavras, sob pena de falsificação dos factos. O abuso das palavras não é apenas uma falta contra a verdade. Tem o efeito político de banalizar.

Prosseguia a crónica registando outros abusos. Na celebração dos 500 anos do édito de 1496 de D. Manuel I — da expulsão ou da conversão forçada dos judeus — um alto dignitário do Estado de Israel qualificou, em Lisboa, a expulsão dos judeus como um “primeiro Holocausto”. A derrapagem obedecia a um objectivo político. Mas constituía também um acto de absoluta irresponsabilidade perante a memória histórica, a judaica e a da Humanidade.

Nem os pogroms antijudaicos — da Idade Média aos princípios do século XX — nem o crime da expulsão e da conversão forçada no século XVI foram um Holocausto. A vontade de enfatizar a intolerância acaba, afinal, por banalizar o que não pode ser banalizado. O Holocausto é um genocídio único, em que um Estado moderno procurou eliminar um povo inteiro de forma industrial.

Nos dias de hoje, o leitor pode ainda apreciar a referência a “terrorismo” na acusação a Bruno de Carvalho. Também a Justiça desconhece o peso das palavras.

Fascismo

Vem isto a propósito do “milagre da multiplicação dos fascistas” nas eleições brasileiras. “Na blogosfera ideológica, fascista virou feijão com arroz”, escreveu o analista Fernando Schüller. Não é um fenómeno brasileiro. Observa o historiador francês Frédéric Le Moal: “Nunca houve tantos antifascistas desde que o fascismo desapareceu.” Sempre existiu na Europa a crença num “fascismo eterno”.

A palavra fascismo deve ser respeitada como “única”, por designar uma das monstruosidades que fabricaram a trágica primeira metade do século XX. Não pretendo discutir aqui as teorias do fascismo. Limito-me a aconselhar a leitura de “clássicos”, como Renzo De Felice ou Emilio Gentile. Tendemos a banalizar o fascismo como ditadura reaccionária. Mas o fascismo nunca se identificou como conservador ou reaccionário, antes denunciava o espírito burguês, cobarde e egoísta, tal como visou substituir o capitalismo liberal por um capitalismo e uma economia submetidos ao Estado. Nascido em contraponto ao comunismo, reivindicava-se como revolucionário e tinha também como meta um “homem novo”. Daí a sua virulência.

Cito Gentile: “Uma ideologia (...) que se proclama antimaterialista, anti-individualista, antiliberal, antidemocrática, antimarxista, tendencialmente populista e anticapitalista, que se exprime mais estética do que teoricamente, através de um novo estilo político e através de mitos, ritos e símbolos de uma religião laica, instituída em função de um processo de aculturação, de socialização e de integração fideísta das massas para a criação do ‘homem novo’.”

Visa realizar, através do Estado totalitário, a “fusão do indivíduo e das massas na unidade orgânica da nação, (...) adoptando medidas de discriminação e perseguição dos que se mantêm fora desta comunidade”. Implica “a subordinação absoluta do cidadão ao Estado, (...) o espírito guerreiro”. Tal como o comunismo, denunciava as oligarquias e a corrupção parlamentar. Intimidava os inimigos pela força e com milícias paramilitares — o squadrismo. Mussolini mobilizou sindicalistas e socialistas revolucionários, antigos combatentes, muitos jovens. Seduziu milhões de europeus entre as duas guerras.

Assim foi o fascismo italiano — deixo de lado o nazismo, “a versão mais patológica do fascismo”, ou os regimes reaccionários que se inspiraram em Mussolini. Deixo também de lado os compromissos a que Mussolini foi forçado pela burguesia industrial ou pela Igreja Católica.

A nossa época

O fascismo é inseparável de uma época. Nasce dos escombros da I Guerra Mundial e da “brutalização” (George Mosse) a que foi submetida a população europeia, do seu cortejo de matanças, do culto da violência e do desprezo pela vida. Nasceu no cataclismo das classes médias depauperadas e na crise da modernidade liberal do fim do século XIX. Este mundo desapareceu em 1945.

Os actuais populismos são fenómenos radicalmente distintos do fascismo. O fascismo era uma ideologia estruturada. Os populismos são mais um estilo do que uma ideologia. Hoje ninguém se propõe criar o “homem novo”. Comparando os dois fenómenos, escreve o historiador Nicolas Lebourg, especialista na extrema-direita: “O sistema económico da época [do fascismo] é o da idade industrial, com massas proletárias. (...) O nosso sistema presente é o de uma economia planetária e financeira.” Passámos da idade das massas para o tempo das identidades. Persistem, certamente, muitos nostálgicos do fascismo, mas não passam de grupúsculos, como os italianos Forza Nuova ou Casa Pound.

Insiste Gentile: “A democracia não está em risco por causa de um fascismo que não existe. Hoje, o perigo é o suicídio da democracia. O que há de novo, em todo o mundo, é um novo poder de direita, nacionalista e xenófobo. (...) Uma política nacionalista democrática iliberal. O fascismo sempre negou a soberania popular, enquanto o nacionalismo populista de hoje reivindica o sucesso eleitoral. Estes políticos de agora dizem-se representantes do povo, pois foram eleitos pela maioria. Coisa que o fascismo nunca fez.”

“As ditaduras descaradas — sob forma de fascismo, comunismo ou regime militar — desapareceram de quase todo o mundo. Os golpes militares e outras tomadas violentas do poder são raros. A maioria dos países realiza eleições. As democracias ainda morrem, mas de maneira diferente” (Steven Levitsky e Daniel Ziblatt).

O palavrão “fascista” apenas serve para desviar a atenção do problema de hoje, o risco de degeneração da democracia.

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