Memória, media e medo

A única coisa que queria mesmo dizer é que tenho visto pouco integradas nas análises da nossa crise atual estas três variáveis essenciais a qualquer grande convulsão histórica: memória, media e medo.

“É fácil começar uma luta, mas depois de começada não se sabe como acabar com ela”. Quem disse isto? Um tipo qualquer que não gostava de se meter em confusões? Não. Martinho Lutero, em 1524. É verdade que na frase anterior dissera: “Se esta matança começa, não parará antes que tudo esteja destruído; a própria Alemanha será devastada”.

O assunto era sério: a revolta de camponeses liderada por Thomas Müntzer, que em sua opinião estava só a fazer aquilo que Lutero antes tinha pregado e que viria a morrer no ano seguinte. Morreu Müntzer, e morreram mais uma dezenas de milhares, quando a revolta foi reprimida. Müntzer não foi sossegado, mas antes recriminando tanto católicos — “sacos de vermes” — como protestantes — “banha luterana” — numa escalada retórica que faz as nossas controvérsias nas redes sociais parecerem umas conversas respeitosas e sonolentas.
 

Müntzer tinha razão. Ele estava só a fazer aquilo que Lutero tinha feito também, misturando argumentos teológicos com insultos a tudo e todos — para Lutero, o papado era “a coisa mais reles de todas as coisas reles”, embora o meu insulto luterano favorito tenha sido contra outro teólogo protestante, de quem o bom doutor Martinho disse que “percebes tanto de teologia como uma vaca em cima de uma amendoeira”. Mas Lutero tinha razão também. As coisas podiam escalar e descontrolar-se. Ele bem o sabia.

Afinal fora só sete anos antes que ele pregara na porta da sua igreja em Wittenberg 95 teses em latim sobre as indulgências. Aliás, antes de as pregar (com um martelo e ainda não com a voz) mandou-as por carta, pedindo um debate só entre os seus pares religiosos. E em apenas poucas semanas alguém se lembrou de traduzir as 95 teses para alemão, e imprimi-las uma e outra vez, aos milhares de exemplares que circularam por toda a Europa central. Sem imprensa poderia ter acontecido a Lutero o mesmo que acontecera duas gerações antes ao teólogo boémio — boémio da Boémia — Jan Hus, que foi queimado na fogueira e de quem Lutero ouvira falar vagamente, embora a Boémia fosse bem perto da Saxónia de Lutero. Mas Hus vivera antes da explosão da imprensa, de tal forma que já Lutero estava completamente lançado na sua luta contra Roma quando recebeu uma carta dos seguidores de Jan Hus que restavam e exclamou para os seus próprios seguidores: “Afinal, éramos todos hussitas e não sabíamos!”.

Entre as primeiras edições das 95 Teses de Lutero e as primeiras controvérsias contra elas (Obeliscos, de Johann Eck) passou um par de meses. Entre essa controvérsia e a resposta de Lutero (sob o título Asteriscos) passou mais um par de meses. Reparem que até os títulos dos panfletos recorrem à linguagem tipográfica (tanto os obeliscos, “†”, como os asteriscos, “*”, servem para chamar a atenção do leitor para uma nota à margem ou de rodapé). Lutero e os seus adversários sabiam que a nova tecnologia da imprensa era indissociável dos movimentos que se estavam a criar. Sentiam o poder que ela lhes dava, mas também a temiam. Por isso exaltavam a tipografia mas queimavam livros. A primeira queima de livros (luteranos contra católicos) ocorreu logo em 1518, a partir daí não faltaram queimas romanas de livros luteranos, e rapidamente se passou à fase seguinte, que Heinrich Heine descreveu lapidarmente assim: “Quem começa por queimar livros também acaba a queimar pessoas”.
Porque me lembrei de Lutero, dos seus amigos, e dos seus inimigos, hoje? Porque me parece que para entender os tempos em que vivemos precisamos de ir procurar sabedoria à contemplação de tempos passados. E porque me interessam em particular tempos em que o tempo se acelera por uma interseção de três coisas: memória, media e medo.

Quando falo em memória, penso principalmente em falta de memória. Se no início do século XVI se tivessem lembrado de como acabavam as guerras de religião, talvez Lutero não tivesse demorado sete anos para alertar que começar uma luta é fácil, mas acabá-la é difícil. E quando falo em medo, não falo só do medo que as pessoas têm, mas do frémito de poder que parece enlouquecer algumas pessoas quando metem medo aos outros, um fenómeno que vemos em todos os autoritarismos.

Esta é uma crónica sem conclusões, só com começos, porque gostaria que ela tanto pudesse ser lida por quem ache que Lutero se deveria ter contido a tempo — para evitar os milhões de mortos das guerras de religião nos cento e tal anos seguintes — como por quem ache que ele não tinha nenhuma outra forma de lutar contra a profundíssima corrupção de Roma naquela época. A única coisa que queria mesmo dizer é que tenho visto pouco integradas nas análises da nossa crise atual estas três variáveis essenciais a qualquer grande convulsão histórica: memória, media e medo. E agora fica dito.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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