Um minucioso caminho de perda

Rui Nunes regressa com um livro que volta a interrogar o seu próprio tempo e todos os tempos. Recuar ao passado, nunca longe de mais, do horror nazi, é como um refrão imprescindível. Já não o “Lembra-te de que és mortal” dos Antigos, mas “Lembra-te do horror que és e podes gerar.”

Foto
RUI GAUDÊNCIO

Um dos primeiros momentos de Suíte e Fúria convoca uma memória duplamente significativa. A “arcaica máquina de morte” (p.9) estabelece nexos de identificação com a anterior obra de Rui Nunes, mas também faz da retoma da temática bélica um instrumento novo para este seu mais recente livro. Heraclito surge desde as primeiras linhas de Suíte e Fúria como uma energia indispensável neste livro. O filósofo pré-socrático congrega em si potencialidades díspares. Desde logo, é uma emanação da História, isto é, de uma circunstância epocal. Esta cria distâncias, esboça rugosidades, antecipa atritos. O grego é tudo menos uma figura linear. Amante das formulações oraculares, obscuras, defendeu uma imparável propensão para a mudança, o conflito, a oposição, a harmonia dos contrários. Quase seguindo as pisadas inquisitivas do filósofo, o texto de Rui Nunes integra-o rodeado de interrogações, como se semeasse a dúvida, a inquietude, à sua volta — “Como escrevia Heraclito? onde? nas margens de que rio? nas praias de que mar? no alpendre de que casa? na sombra de que parreira? de que pinheiro? ou não escrevia? falava ao ouvido do adolescente sentado na caruma, enquanto lhe passava a mão pelo cabelo e as formigas lhe subiam pelo branco da túnica?” (p.9) Heraclito é, portanto, uma hipótese de trabalho, uma noção em que o texto de Rui Nunes irá pegar. Memória de um tempo passado, exemplo matricial, que funciona como agente da perspectivação histórica. A reconstituição de uma época é feita por escassíssimos dados, sempre em estado fragmentário. Como tudo o que nos chegou desse mundo fascinante. De tal forma que, ao sair desses momento “contextuais”, que “apresentam” Heraclito, vêm agarradas às palavras do texto certas marcas inteligíveis que decorrem do contacto com a presença daquele filósofo — “a vida é um fragmento” (p.11). Porque o humano é um espelho partido para as palavras — ou será o contrário, afinal? Seja como for, ambos são demasias, ambos são uma falha essencial — “Cada palavra é no seu isolamento uma verdade brutal, intensa como uma pedra num terreno lavrado” (p.31)

A escrita prescinde de tentar sequer organizar o que a memória fornece sob a forma de pedaços, partes — restos. Aliás, é como se esta escrita gerasse a intenção de espelhar os processos pelos quais as recordações emergem. O que implica, naturalmente, repetições, a sobreposição de determinadas incidências, a presença de ecos, homologias — “não aguento: guincha a mulher ainda nova, e levanta-se, fica um instante apoiada no espaldar da cadeira, e depois corre para a porta, bolcheviques, bolcheviques, bolcheviques, o miúdo limpa os dedos à toalha, a mulher de preto ri: fizeste de propósito, o velho ri: fez.” (p.37) E, apesar de neste livro emergir algo como um núcleo mais distintamente narrativo, o que prevalece é a captura de momentos, de modulações, de instantes irreconciliáveis num todo harmónico. Em última instância, trata-se da reintegração da antiga mimese. Mas apenas neste sentido: a escrita de Rui Nunes “imita” o caos da existência, a incandescência do pensamento. Por isso recusa o adorno e a decoração. E, pela mesma ordem de ideias, denega a organização estrita das suas matérias. Mesmo quando lhes confere uma textura mais abertamente narrativa, as suas concretizações ficam sempre deliberadamente aquém de uma totalização. Daí que se fale aqui do “que se julgava ininterrupto” (p.71) como de algo irremediavelmente caduco. É como se esta escrita descresse da totalidade, da unificação. Nisso — como em tudo o resto, aliás — esta escrita se afasta do romanesco e mesmo do romance enquanto género literário, “com a sua coesão de animal saciado” (p.70) Porque se trata aqui sempre de “uma totalidade feita de cacos que não se colam uns aos outros” (p.90).

Uma criança rodeada de velhos, uma criança que descobre o mundo e se descobre perante ele. Além desse fundo mínimo, não ficaremos a saber muito mais. Não seria necessário. A presença de Heraclito, por seu turno, constitui um mecanismo de desarticulação. Permite ao texto interrogar a própria constituição de si. Que fazer com o peso da História, que fazer com a ideia de tempo, de personagens, de acção — com a noção, em última análise, de ficção? As palavras, perante estas circunstâncias, surgem como instrumento questionável, por entre aquilo que nunca deixa de ser um poder enorme: mesmo se limitado, falível — “Começamos a escrever o mundo e o mundo transforma-se numa frase com a harmonia provisória de uma eternidade qualquer” (p.59) Porém, a única eternidade possível é proporcionada por elementos, necessariamente, finitos, passageiros na sua efemeridade, como sejam marcas cíclicas, que apenas reforçam o passar do tempo — “só os castanheiros no seu outono continuam eternos” (p.62). Não se trata da rebusca de um paradoxo, mas da constatação do absurdo que mina a perscrutação da eternidade. Porque a memória da barbárie nazi nunca se afasta das preocupações — “Juntem mil corpos nus e terão a nudez, um substantivo abstracto, um conceito. E poderão decidir da morte, da vida ou do abandono.” (p.23) —, a escrita de Rui Nunes parece fazer-se sempre alheia ao optimismo de um projecto englobante e a grandiosas intenções construtivas. Porque a ruína espreita a cada passo da História, cabe a esta escrita, sobretudo, observar e registar (do modo mais impressivamente idiossincrático) o horror de que o ser humano se rodeia. Dizer, em suma, “um minucioso caminho de perda.” (p.86)

Sugerir correcção
Comentar