A propósito de A balada de Adam Henry

O presente comentário ao filme The children act/A balada de Adam Henry pretende discutir algumas das questões simultaneamente psicológicas e institucionais levantadas por ele, bem como pelo correspondente e comovente livro de Ian McEwan.

O presente comentário ao filme The children act/A balada de Adam Henry pretende discutir algumas das questões simultaneamente psicológicas e institucionais levantadas por ele, bem como pelo correspondente e comovente livro de Ian McEwan. Elas pareceram-me ausentes das (poucas) críticas portuguesas ao filme, agora nas salas, e gostaria de acrescentá-las ao debate.

Uma das mais centrais é a clássica questão da importância da situação versus do indivíduo na compreensão do comportamento. Para lá chegar, começo pela observação que em 1953 dois psicólogos (H. Murray e C. Kluckhohn) faziam sobre a humanidade: “todos os homens [sic] são: (1) iguais a todos os outros; (2) iguais a alguns outros; (3) como nenhum outro.” Para compreender a humanidade seria assim preciso atender a estas três dimensões, e a psicologia tem algumas subdisciplinas mais interessadas em (1) (a psicologia dos processos básicos), outras em (2) (a psicologia social e cultural) e outras em (3) (a psicologia clínica). Porém, talvez mais importante ainda é que não pode haver essa compreensão sem atendermos ao seguinte: as três dimensões interagem entre si, e estão relacionadas com instituições sociais diferentes, que as protegem e sustêm e que, também elas, interagem entre si.

Na minha interpretação, a história da Balada de Adam Henry ilustra uma interacção que envolve três instituições principais. Duas destas estão mais orientadas para o ponto (1), ou seja, foram desenvolvidas para tratar cada pessoa de forma abstracta, ou como qualquer outra pessoa – a instituição legal e as Testemunhas de Jeová. A outra está sobretudo orientada para o ponto (3), ou seja, foi desenhada para lidar também com a pessoa concreta, semelhante a nenhuma outra – a família. Livro e filme questionam ademais o que pode acontecer quando esta interacção envolve uma pequena deslocação no papel de uma destas instituições (a legal) e uma modificação considerável no papel de uma outra (a família). Mais especificamente, então, a questão central desta história é sobre as consequências do facto de uma instituição orientada para lidar com o sujeito abstracto tomar uma decisão no lugar de outra orientada para lidar com o sujeito concreto porque esta última está sob a influência de ainda uma outra instituição também orientada para o sujeito abstracto – e esta decisão ser precedida de um breve encontro.

A interacção começa quando uma juíza (Fiona/Emma Thompson/admirável) visita, no hospital, um jovem – Adam (Fionn Whitehead) – que só com uma transfusão poderá sobreviver a uma leucemia, mas que a recusa, juntamente com a família, por serem Testemunhas de Jeová. A juíza faz esta visita quando precisa de decidir se Adam – prestes a completar 18 anos – deverá ser forçado a fazer a transfusão e a viver. Faz, portanto, a visita como representante de uma instituição que vê as pessoas como iguais perante a lei, ou seja, como equivalentes em abstracto. Mas esta visita abre, embora só ligeiramente, uma fresta para o sujeito concreto. Há um breve momento em que a juíza se encontra com o Adam concreto no amor deste pela música, relacionando-se com ele como Fiona, uma pessoa concreta que ama também a música e a poesia. É o mais breve dos momentos, esboçando apenas uma abertura muito estreita para o Adam sujeito singular. Mas surge como muito significativo em contraste com o que a família lhe oferece: pois esta, habitada pelas regras dos Jeovás, apenas o vê como sujeito abstracto. Consequentemente, o único momento que lhe oferece, na sua doença, um encontro de seres singulares acontece com a juíza, e esbate por instantes a fronteira entre pessoa e papel.

Na minha perspectiva, é uma repetição deste encontro significativo que Adam depois tão insistentemente persegue, sem resultado, ao seguir a juíza: a única compreensão que ela pode oferecer-lhe é a de um individuo abstracto a outro. O breve momento de seres singulares que partilharam não pode ser repetido nem sustentado. No entanto, a dor de Fiona nas cenas finais é ainda uma dor por esta impossibilidade – e por não poder salvar o sujeito singular, embora tivesse sido encarregue de salvar o abstracto. A dor de alguém que vê Adam como não sendo igual a nenhum outro.

Assim, a dúvida central que a história deixa é a seguinte: se a família de Adam estivesse a funcionar da forma que está colectivamente instituído que lhe cabe, e fosse capaz de acolher o sujeito singular, proporcionando-lhe encontros significativos – teria Adam depois tão insistentemente procurado transformar uma abertura estreita numa porta aberta? Ou talvez melhor, teria ele tomado por porta aberta o que era apenas uma estreita fresta?

Uma segunda dúvida, menos central, que a história traz refere-se à relação da juíza com o marido Jack (Stanley Tucci/sólido), i.e., refere-se à interacção da sua instituição laboral com a sua família. A juíza/Fiona parece oferecer ao marido o mesmo tipo de entendimento que os seus casos lhe pedem; responde-lhe com princípios abstractos e implementa-os de uma forma que, servindo a instituição legal, nem sempre serve as relações humanas: com regras dicotómicas e a preto e branco. Seria o seu funcionamento em família diferente se não fosse juíza?

E para finalmente regressar à questão clássica da importância da situação versus o indivíduo na compreensão do comportamento humano: como deveremos entender o comportamento pouco habitual de Adam ao seguir a juíza? Será ele uma pessoa perturbada? Ou é a situação que é perturbada? A minha interpretação vai claramente na direção da situação. E a situação perturbada que vejo não é a de uma juíza que por momentos sai do tribunal. É a de uma família totalmente habitada – poderíamos dizer colonizada – por outra instituição. Uma situação que não deixa a Adam mais nenhum espaço senão o espaço abstracto e vazio em que por fim morre.

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