Resposta aos sem-abrigo de Lisboa está estagnada

Um quiosque de saúde fechou, a atribuição de cacifos está suspensa e a de casas também. Câmara de Lisboa nega atrasos na execução de programa municipal.

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Ainda há centenas de pessoas a viver nas ruas de Lisboa Daniel Rocha

Quase uma dezena de projectos de apoio a pessoas sem-abrigo em Lisboa estão atrasados. A um mês e meio do fim do ano, momento em que devia estar plenamente em vigor o Programa Municipal para a Pessoa Sem-Abrigo 2016-2018 (PMSA), há iniciativas paradas a meio e outras que não chegaram a sair do papel. Algumas associações do sector queixam-se de “estagnação” mas também de “desinvestimento”, denunciando que há respostas a esta população que podem ter de acabar brevemente. A câmara de Lisboa aprova esta quinta-feira a continuidade de alguns protocolos até Outubro de 2019, nega atrasos e garante estar a trabalhar num novo PMSA.

"Não há atraso na implementação ou execução de medidas contidas no programa anterior. Trata-se de um documento estratégico que tinha, como todos os planos, natureza previsional: o que se verifica é a necessidade de adequar algumas das respostas, designadamente no que se refere ao Housing First, à realidade actual", respondeu o gabinete de Manuel Grilo, vereador dos Direitos Sociais, a perguntas do PÚBLICO.

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Neste momento há pelo menos três projectos em risco, que perderam o financiamento municipal na última revisão dos apoios anuais, em Junho. A Associação Conversa Amiga (ACA) fechou um dos quiosques de saúde – onde se prestam cuidados básicos a quem tem dificuldade de acesso aos centros de saúde – e deixou de atribuir cacifos a sem-abrigo, apesar de uma lista de espera de 29 pessoas, por falta de garantias de continuidade.

A Crescer, associação responsável pelo Espaço Âncora, teme pelo futuro desta infra-estrutura da freguesia de Arroios frequentada por cerca de 400 pessoas por ano. Ali é disponibilizado acesso a material asséptico para consumo, cuidados de enfermagem, comida e roupa, balneários, computadores e televisão, assim como actividades ocupacionais.

“Estamos completamente sem rede. Este executivo cortou no financiamento, mas cortou sem diálogo. Havia aqui uma relação de confiança que se perdeu”, diz Américo Nave, presidente da Crescer. Duarte Paiva, da ACA, denuncia a mesma dificuldade de comunicação: “Estamos sozinhos, sem ajuda. Hoje sentimos que somos o sustento do NPISA (Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo), não parceiros da estratégia da cidade.” O presidente da Conversa Amiga diz ainda que tenta há vários meses reunir com a coordenação do NPISA, sem sucesso.

O vereador Manuel Grilo diz que estas três respostas "não estavam consideradas no anterior PMPSA e eram avaliadas periodicamente e no âmbito de candidaturas pontuais". O eleito garante que está a fazer uma "análise tendo em vista a possibilidade de estarem contempladas no PMPSA com apoios mais consistentes".

Até Março do ano passado, o PMSA e o NPISA eram liderados pela mesma pessoa, João Marrana, que entretanto abandonou a pasta. Actualmente, o PMSA é coordenado pelo vereador dos Direitos Sociais, Manuel Grilo, do Bloco de Esquerda, que chegou ao cargo há poucos meses, substituindo Ricardo Robles. Já o NPISA é liderado por Teresa Bispo, depois de ter passado por pelo menos mais duas pessoas.

O gabinete de Manuel Grilo diz ainda que desconhece as queixas das associações sobre o NPISA. "Não temos qualquer conhecimento verbal ou documental de algum descontentamento com o NPISA, tanto mais que acabou de aprovar por unanimidade os dois novos eixos (Saúde e Alojamento/ Empregabilidade) e um alargado leque de novas candidaturas por parte de outras entidades, estando já a aguardar os procedimentos de novos pedidos de adesão."

A criação do NPISA, em Janeiro de 2015, mudou por completo a intervenção junto desta população. O facto de as associações estarem reunidas no mesmo espaço e partilharem bases de dados e recursos agilizou os processos de apoio, tornou mais fácil o encaminhamento para respostas de alojamento, cuidados de saúde, tratamento de dependências, e reduziu o risco de se repetirem intervenções. Instituiu-se a figura do gestor de caso, responsável por tudo o que diz respeito à intervenção junto das pessoas sem-abrigo que estão a seu cargo, e deu a todas as associações a possibilidade de requerer apoios à Santa Casa da Misericórdia.

As associações viram as suas respostas tornarem-se mais eficazes. E conseguiram chegar a franjas mais excluídas, que praticamente não tinham relação com a rede social. “Começámos efectivamente a tirar as pessoas da rua”, resume Madalena Curado, gestora de caso da Associação Ares do Pinhal.

O trabalho concertado pôs a cidade na linha da frente da estratégia nacional para a integração de pessoas sem-abrigo, num momento em que, primeiro Marcelo Rebelo de Sousa e depois o ministro Vieira da Silva assumiram a eliminação deste fenómeno como um desígnio nacional.

Atribuição de casas atrasada

A situação terá mudado entretanto. “Não se ofereceu nem mais uma cama à cidade, nem mais um projecto, nem mais um apoio. O que nasceu, morreu”, critica João Marrana. “Estamos outra vez no básico”, corrobora Duarte Paiva, da ACA. “Voltámos à Lisboa de há cinco anos, com a coordenação [do NPISA] a mostrar um completo desconhecimento da realidade”, afirma.

Desde o final do ano passado que a atribuição de 50 casas a pessoas sem-abrigo está apenas dependente da assinatura de um protocolo, denunciam João Marrana e confirmam as duas entidades envolvidas. As associações responsáveis por este projecto de Housing First (assente na ideia de que a autonomização das pessoas sem-abrigo começa com uma habitação digna) foram escolhidas por concurso em meados de 2017: a Crescer e a Associação para o Estudo e Integração Psicossocial (AEIPS), as mesmas que gerem as 80 casas deste modelo já existentes em Lisboa. O PMSA previa que até ao final de 2018 a cidade tivesse mais 100 casas – metade criada em 2017, a outra metade este ano.

Teresa Duarte, presidente da AEIPS, não sentiu o desinvestimento de que se queixam as outras associações. Mas diz que o sucesso das 80 casas Housing First já existentes demonstra a necessidade de mais investimento. “A generalização desta resposta vai de encontro ao desígnio do Presidente da República de deixar de ter pessoas na rua até 2023. E para isso é preciso habitação”, afirma.

"O programa Housing First foi desenhado no anterior mandato, não tendo previsto o drástico aumento de preços da habitação no mercado privado. Neste âmbito, importa referir que os valores orçamentados para o actual PMPSA já não são suficientes e serão corrigidos no próximo programa", informa Manuel Grilo. "A subida de preços do mercado livre de habitação tornou a opção anteriormente tomada de arrendar em mercado livre muito onerosa para o município. A afectação de habitações municipais adicionais para utilização na área dos sem-abrigo, seja para projectos em modelo Housing First ou apartamentos partilhados é a solução para este problema."

Outros projectos, alguns com orçamento aprovado e prontos a executar, ficaram igualmente parados no último ano e meio. Quando, em Março de 2017, João Marrana deixou a pasta, “tinha na mão as chaves de quatro apartamentos T3 partilhados”, prontos a ser atribuídos à associação que os iria gerir. O antigo responsável ficou sem perceber porque nada avançou entretanto.

Estava igualmente preparado o concurso para a criação de quatro espaços de ocupação diurna, desenhada uma unidade móvel de saúde e higiene, cativo um espaço para criação de um centro de reconciliação familiar (para facilitar o contacto entre pessoas sem-abrigo e as suas famílias). Uma proposta de Plano de Saúde para a População em Situação de Sem-Abrigo, trabalho de vários meses de um grupo de associações, também ficou na gaveta.

O vereador afirma que os pontos previstos neste plano "serão integrados no Plano de saúde, Qualidade de Vida e Bem-Estar de Lisboa, que ainda carece de finalização e aprovação em reunião de câmara".

Até ao final deste ano estava também prevista a abertura de três núcleos de apoio local (existem dois destes espaços onde as pessoas sem-abrigo podem comer, trocar de roupa e receber acompanhamento social), de um espaço de formação profissional e de um restaurante que seria um projecto de promoção de emprego. Para este último projecto, a câmara atribuiu a primeira parte do financiamento (60 mil euros), mas a associação responsável, a Crescer, espera desde o ano passado autorização para fazer as obras. Manuel Grilo espera que em 2019 a situação esteja resolvida.

Obras por avançar

Entre os projectos parados consta ainda a requalificação do centro de alojamento temporário do Beato, o maior da cidade, gerido pela associação Vitae. As obras e a mudança no modelo de intervenção estão previstas há vários anos. Com 271 camas, disponíveis para que a maioria das pessoas apenas ali pernoite, este centro funciona em moldes que já não se coadunam com a filosofia de intervenção assumida pela estratégia nacional para a população sem-abrigo. Esta advoga por uma redução das camas de emergência e o aumento das respostas de longa duração, com acompanhamento personalizado.

O plano pensado para o centro continua assente nesta filosofia, assegura Sónia Ferreira Gonçalves, presidente da Vitae. A visita e o “empenho demonstrado” pelo vereador Manuel Grilo no início deste mês deixou-a optimista de que, “apesar do impasse”, as obras avancem em breve. “Neste momento, o que fazemos fica aquém do que gostaríamos e do que estas pessoas merecem”, afirma. "Neste mandato, estamos finalmente a iniciar de uma forma concertada todo este processo de requalificação desta resposta", afiança Manuel Grilo.

As propostas que se discutem esta quinta-feira em reunião de câmara são a extensão do financiamento a algumas respostas em vigor: housing first, Núcleo de Apoio Local de Arroios e equipas técnicas de rua. Nos documentos a votação lê-se que, daqui a um ano, “estará em pleno vigor o novo plano municipal”. 

“Agora o NPISA está numa fase mais mexida, porque a coordenação teve que ir descobrir tudo o que estava a ser feito. Está agora a descobrir os prazos para cumprir e parece-me que tenta reunir todos os esforços para conseguir concretizar o trabalho”, afirma Madalena Curado, da Ares do Pinhal.

Fruto do que diz ser o desinvestimento recente, João Marrana tem a percepção de que a população sem-abrigo aumentou. Compara o cenário actual com as contagens feitas em 2013 e 2015: “Zonas que não tinham pessoas na rua como Benfica, Campo de Ourique, Graça, agora começam a ter”.

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