A crise de Tancos

A crise de Tancos exige que tenhamos o direito de conhecer toda a verdade, sobretudo no domínio dos comportamentos institucionais.

O caso de Tancos, que não é um mero caso de polícia, não prescreveu. Continua a ser um enigma dentro de um mistério envolto num segredo. E pode tornar-se num caso em que o poder político se furtou à transparência e obstruiu a verdade e a Justiça provocando o desgaste da imagem das Forças Armadas (FA), que como instituição estruturante do Estado merece ser prestigiada.

Houve uma comprovada falha de segurança com repercussão para a Segurança Nacional e efeitos reputacionais gravíssimos. Qualquer assalto ou furto em instalações militares constitui uma vulnerabilidade do nosso sistema defensivo gerador de insegurança e quebra de confiança nas instituições.

Escrevi em Maio de 2018 – “O tango de Tancos” – que o desaparecimento enigmático – furto, encenação ou mistificação – de material de guerra dos Paióis Nacionais de Tancos (PNT) era um episódio inusitado com objectivos de carácter duvidoso. E constituía um indício preocupante de manipulação dos factos, tendo em vista lançar um manto de obscuridade na tentativa de condicionar o inquérito e as causas do desaparecimento das armas: ocorreu ou foi uma manobra de diversão para justificar inventários?

Nas revelações sobre o inquérito, o Ministério Público deixou bem vincado a existência de duas vertentes: a investigação ao assalto e um “inquérito autónomo” sobre as circunstâncias em que ocorreu o aparecimento em 18 de Outubro de 2017, na região da Chamusca. O conflito institucional – inadmissível – entre órgãos de investigação criminal torna o processo mais complexo.

Face a notícias relativas ao desaparecimento de material de guerra ocorrido em Tancos a 28 de Junho de 2017, foram, desde logo, nos termos legais, iniciadas investigações. Na sequência de análise aprofundada dos elementos recolhidos, o Ministério Público apurou que tais factos se integram numa realidade mais vasta.

Estão em causa, entre outras, suspeitas da prática dos crimes de associação criminosa, tráfico de armas internacional e terrorismo internacional. Atenta a natureza e gravidade destes crimes e os diferentes bens jurídicos protegidos pelas respectivas normas incriminadoras, o Ministério Público decidiu que a investigação relativa aos factos cometidos em Tancos deveria prosseguir no âmbito de um inquérito com objecto a ser investigado no Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP).

Independentemente das responsabilidades criminais, existe uma clara responsabilidade política tardiamente assumida pelo ex-ministro da Defesa Nacional (MDN), cuja gestão foi vista com ligeireza, sobranceria e contradições insanáveis. O responsável pela tutela e o ex-CEME mantiveram um jogo de sombras – não conseguiram encobrir a sua “cumplicidade” por quem tem a obrigação de zelar pela integridade da República.

O Presidente da República tem reafirmado, reiteradamente, a sua posição de querer ver apurados integralmente os factos e os seus eventuais efeitos jurídicos e criminais, para os quais é essencial o papel do Ministério Público, “doa a quem doer”, o que significa responsabilização até ao topo da hierarquia.

Se o Presidente e comandante supremo das FA soubesse quem furtou e o destino das armas, não exigia veementemente um esclarecimento. Ou seja, deixar a investigação apurar exactamente quem fez e qual a motivação, quem não fez mas soube, quem não fez, soube e encobriu e como foi. Homenagem ao Presidente pela transparência, que não está com “ansiedade”, mas quer apenas a verdade com premência para que se faça justiça em tempo útil.

Neste contexto, o actual MDN foi infeliz ao afirmar que tudo se saberá daqui a uns anos, quando o processo estiver no Arquivo Militar. Devia saber que não se faz “galhofa” com assuntos de Estado. Inusitado e mau presságio.

O ex-MDN soube da trapalhada que envergonha e diminui o prestígio das FA, e é natural que – com a gravidade dos seus contornos – desse a conhecer a situação ao primeiro-ministro (PM). E este, tendo conhecimento, deveria exigir imediatamente responsabilidades. Não o fazendo, António Costa pode vir a ser cúmplice e como tal poderá gerar uma crise política. Ao nível a que o assunto foi tratado e dado conhecimento pela PJM, não é crível que se venha com o argumento de que não souberam avaliar a gravidade da situação. Se assim for, o país não necessita de políticos e governantes.

Saiba o PM o que souber sobre Tancos – desde um debate quinzenal, ficou patente que sabe mais do que o que diz –, Costa tem consciência da enorme gravidade da crise de Tancos, que afecta a segurança nacional e até internacional.

O PM e ex-MDN geriram mal a crise usando sempre o mesmo guião: desvalorizar a situação, aparentar que ela tem normalidade dentro da sua excepcionalidade, transferir a responsabilidade para outras entidades ou instituições, manter em funções a todo o custo um ministro fragilizado, que mesmo perante os factos assumiu publicamente “que categoricamente não sabia”. Perversidade perante um assunto de Estado.

É justamente porque a gestão do tempo não correu bem que o PM se viu obrigado a fazer uma remodelação alargada. Mas não restam dúvidas de que a intenção primeira desta remodelação foi ofuscar e mais uma vez desvalorizar a crise de Tancos.

Por outro lado, é inaceitável tentar envolver o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa na trapalhada a propósito do caso do alegado encobrimento associado à recuperação do material roubado em Tancos. Em declarações, já afirmou que não o calam. E dirigem-se aos que tentam agora envolver a figura do Presidente naquilo que ele próprio designou por uma “nebulosa” – obviamente não facilita investigação – que pode ter um efeito prático: não apanhar os responsáveis pelo furto de armas em Tancos. Isto é, este processo continua armadilhado pela contra-informação no espaço mediático, correndo o risco de os responsáveis nunca serem encontrados e punidos como já aconteceu na PSP e nos Comandos.

A crise de Tancos exige que tenhamos o direito de conhecer toda a verdade, sobretudo no domínio dos comportamentos institucionais. Do que vamos sabendo da conduta dos principais intervenientes até Janeiro de 2018, ficamos com uma imagem inquietante! Documentos sem data e sem assinatura, eventuais versões diferentes do mesmo documento, versões contraditórias no tempo e no local e tudo o que escapa para a comunicação social. Intoleráveis as fugas sucessivas de informação, com habitual desrespeito pelo segredo de justiça.

O caso de Tancos, para além da sua gravidade, é demonstração de negligência — em toda a cadeia hierárquica — na avaliação das vulnerabilidades numa área crítica e sensível e falta de implementação de medidas previstas nas normas em vigor. Iniludível a incompetência que, associada à ignorância e arrogância, poderá ser perigosa, para não dizer explosiva, na governação.

O grave acontecimento de Tancos é o reflexo do estado de degradação das infra-estruturas e meios afectos às FA, da já crónica falta de pessoal e da degradação da condição militar que afecta a prontidão das FA.

Por último, o caso de Tancos contribui para uma grave crise da instituição militar que, a par de outras funções soberanas do Estado, vem de há muitos anos e tarda em ser resolvida com ponderação e sentido de Estado. E, sobretudo, não se tente usar ou imiscuir as FA no combate político.

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