“Vou de carro, fica mais em conta!”

Os centros urbanos sofrem um congestionamento crónico, elevando os níveis de poluição a valores que ameaçam a saúde pública e a necessidade de atingir metas ambientais ambiciosas.

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Nabeel Syed/Unsplash

Se pudéssemos resumir num provérbio ou ditado popular o livro O Triunfo dos Porcos, de George Orwell, diríamos que “de boas intenções está o inferno cheio”. A propaganda é inimiga da realidade, do país real. E o país real está hoje construído à medida de um povo que, fruto do seu carácter afável, acaba por ter um estado social longe do que merece e precisa.

Sabemos, pela insatisfação que é pública e considerando as greves, que áreas fundamentais da nossa democracia, como a educação e a saúde, continuam com muitas dificuldades fruto de um desinvestimento que dura há vários anos e vai continuar. Mas há outra área que merece a nossa preocupação – a mobilidade. Recentemente, o Governo inscreveu no Orçamento do Estado a criação de um valor limite de 40 euros no passe mensal para as áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, e a gratuitidade, nos transportes públicos para crianças até aos 12 anos. Apesar de bem-vindas, estas medidas contribuem pouco ou nada para a melhoria da rede nacional de transportes públicos, reduzir a enormíssima quantidade de veículos que diariamente circulam nos grandes centros urbanos e para se constituírem como uma alternativa válida ao transporte individual e aos acessos da periferia. Os preços, o tempo de viagem e o desconforto são alguns dos motivos pelos quais os transportes públicos em Portugal são relegados para um plano secundário. Aqui ficam alguns exemplos:

  • De acordo com o site da CP, realizar uma viagem de comboio entre Porto-São Bento e Livração (Marco de Canaveses) num comboio urbano (cerca de 60 quilómetros) custa 4,40 euros. No entanto, se sair cerca de 12 quilómetros antes, em Caíde, o passageiro pagará 2,95 euros. Quase 1,50 euros por mais 12 quilómetros. É exorbitante. Mesmo com os preços dos combustíveis tão elevados, a viagem de carro pelas estradas nacionais ficará por valor idêntico e demorará praticamente o mesmo. No caso da auto-estrada chega-se ao destino cerca de 30 minutos antes com um custo de aproximadamente 7,30 euros ou pelas estradas nacionais (evitando portagens) por aproximadamente o mesmo tempo de viagem e um valor que ronda os cinco euros.
  • Contudo, esta informação prestada no site está incorrecta (acontece o mesmo para comboios inter-regionais). Isto porque, se o bilhete for adquirido nas máquinas automáticas na Estação de São Bento, no Porto, o preço pago será de 3,20 euros. E, após o transbordo em Caíde para outro comboio em direcção à Livração os revisores não estão munidos de aparelhos que permitam controlar este troço de 12 quilómetros, ou seja, alguém que tenha comprado o bilhete apenas até Caíde não terá que pagar a restante viagem após o transbordo. É motivo para citar Fernando Pessa: “E esta hein?” A desconsideração é tal que nem há exigência na prestação dos serviços, ora online ora no controlo de passageiros. E vocês esfregam as mãos e dizem: "Porreiro, pá". Afinal pagamos menos do que eles dizem no site e ainda podemos garantir uma borla entre Caíde e Livração. Em certa medida não vos condenámos, afinal de contas os impostos que pagamos são tão pessimamente devolvidos em serviços que mais vale sermos espertos do que zelarmos pelo bem público.
  • Uma viagem entre as estações de Porto Campanhã e Coimbra B (114 quilómetros), através do Intercidades, tem um custo de 13,40 euros e o tempo de viagem é de 1h10m. Depois, chegados a Coimbra, e se — como é o caso frequente de um de nós — quisermos ir até ao Pólo II da Universidade de Coimbra (situado no extremo sul da cidade), temos duas opções: vamos de táxi e pagamos cerca de sete euros ou vamos de autocarro (1,60 euros, título único de viagem) e demoramos cerca de 50 minutos, sendo que somos obrigados a realizar um ou dois transbordos. Portanto, precisamos de duas horas e de gastar no mínimo 16,60 euros para ir do Porto ao Pólo II da Universidade de Coimbra utilizando exclusivamente os transportes públicos. A mesma viagem de automóvel demora cerca de 1h15 e custa aproximadamente 18 euros.
  • No Porto, quem por exemplo viver na zona da cooperativa da Prelada (onde há cerca de 2000 apartamentos) tem apenas disponível (para além do metro cuja cobertura é limitada) um autocarro que passa a cada 30 minutos. É fácil perceber que praticamente todos os moradores desta zona utilizam o carro para se deslocarem para o trabalho: o extenso espaço de estacionamento está quase vazio a partir das 9horas.
  • Finalmente, destacamos Oeiras e quem trabalha em Benfica, por exemplo. Vamos descrever a gincana. Opção 1: de autocarro, chegar a qualquer estação da linha da CP entre Lisboa e Cascais, depois apanhar o comboio até ao Cais do Sodré e de seguida o metro até às Laranjeiras ou Alto dos Moinhos. Opção 2: o mesmo percurso de comboio até Algés e seguir depois de autocarro pela CRIL e segunda circular — na qual não existe qualquer faixa para autocarros — até Benfica. De uma forma ou de outra, é um percurso que demora aproximadamente 1h30. De carro? Quinze minutos sem trânsito ou um hora — na pior das hipóteses — em hora de ponta.

São apenas quatro exemplos, mas acreditamos que, se fizéssemos uma consulta pública, o volume de exemplos e experiências surpreendentes seria suficiente para publicar um livro entre o drama, a aventura e a comédia. Como consequência, os centros urbanos sofrem um congestionamento crónico, elevando os níveis de poluição a valores que ameaçam a saúde pública e a necessidade de atingir metas ambientais ambiciosas considerando o cumprimento do Roteiro para a Neutralidade Carbónica, apresentado recentemente pelo Governo, o retrato da mobilidade em Portugal não é bom. Acresce ainda a sistemática falta de estudos que possibilitem identificar as fragilidades da rede nacional de transportes públicos, para depois se promoverem estratégias que visem um investimento num plano nacional de mobilidade, que não existe. Por estes motivos, isola ainda mais as populações do interior que não encontram uma solução eficaz que vá de encontro às suas necessidades — e vantajosa para se deslocarem utilizando os transportes públicos.

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