Maria Emília: do Brasil a um aconchego chamado fado

Natural em São Paulo, neta de português e filha de um português nascido no Brasil, Maria Emília está há anos nas lides fadistas. Casa de Fado é a sua (boa) estreia em disco.

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Maria Emília fotografada para o disco Casa de Fado ABÍLIO LEITÃO

Nasceu no Brasil, em São Paulo, e canta-nos um “coração vagabundo”. Mas não é o de Caetano Veloso, é o de Beatriz da Conceição. Canta-o com a frescura cristalina de uma voz de 27 anos, mas também com a densidade e entrega do fado. Assim: “Meu coração vagabundo/ Irá, seja como for/ Rua em rua, mundo em mundo/ Atrás de ti, meu amor.” É um dos fados que melhor brilham na voz de Maria Emília, no disco Casa de Fado, que assinala a sua estreia oficial nos registos fonográficos (embora haja um anterior).

Mas como pode uma história de fado, castiço e não tropical, começar no Brasil? Com uma história de emigração, como recorda Maria Emília ao Ípsilon. “O meu avô, que nasceu na Anadia, foi para o Brasil, conheceu a minha avó, tiveram seis ou sete filhos. Todos nascidos lá, no Estado de São Paulo. A mais velha tem 78 anos e o meu pai, o mais novo, com 63, naturalizou-se português mais tarde.” Embora tenha um nome tipicamente brasileiro, Wanderley. Ora numa altura em que a situação estava particularmente violenta no Brasil, nos anos 1990, ele, que ali tinha duas empresas de mármores e granitos com os irmãos, recebeu uma proposta de trabalho de Portugal e aceitou. E instalou-se no Minho. Maria Emília, que nascera em 23 de Maio de 1991, acompanhou o pai nessa viagem com permissão da mãe, brasileira (os pais estavam separados, à data).

Foi uma ida com volta. Um dos tios que tinha ficado a tomar conta das empresas no Brasil teve um problema de saúde e Wanderley viu-se forçado voltar, com Maria Emília atrás (“porque era muito novinha”). Mas o pingue-pongue não acabou aí. “No Brasil os prisioneiros não são os bandidos, somos nós que não podemos sair de casa. Eu estava na idade em que queria ir ao shopping com as minhas amigas, beber um café à esquina, e o meu pai concluiu que assim não iria dar. Ficaram as minhas tias à frente de empresa e o meu pai optou por vir para Portugal.”

Desta vez o emprego foi outro: numa casa de fados, como guitarrista. Porque já no Brasil, por influência do avô, o fado entrara nas suas vidas. “Ele é que levou o fado lá para casa. E o meu pai, por interesse, ia muito com ele às comunidades portuguesas em São Paulo e aprendeu a tocar guitarra portuguesa.”

Por causa do tabaco

A relação de Maria Emília com o fado começou no Brasil. Na Alfama dos Marinheiros. “Era uma casa de fado na Rua Pamplona, mesmo no centro da cidade de São Paulo, na zona mais chique. O dono era um português, o senhor Jerónimo Gomes, e a primeira vez que cantei fado foi lá. Eu ouvia fados no carro e em casa, mas só ia para os fados porque gostava muito da comida que lá havia: bacalhau com natas, ovos moles. Ia com o meu pai, e como sabia tudo de cor, cantarolava nas mesas. Uma noite, devia estar muito bem-disposta, pedi para cantar uma quadrazinha à desgarrada. E assim começou.”

Garota de seis anos, achou “graça às palmas” e pouco mais. O pai é que achou que ela “era afinadinha” e decidiu aprimorar-lhe os dotes. “Ele ouvia maioritariamente homens, Carlos Zel, Manuel de Almeida, mas nessa altura começou a comprar mais discos com senhoras a cantar.” Só que em vez de lhe comprar discos de Amália, comprava-lhe discos de Beatriz da Conceição, Fernanda Maria, Hermínia Silva. E assim fez a sua formação. “Foi o meu pai que me incutiu esse leque de fadistas. Mas o primeiro tema que cantei já em Portugal, com 12 anos, foi da Amália: os Caracóis. Era o que eu conseguia perceber com aquela idade. Não me ia pôr a cantar: ‘Meu corpo, é um barco sem ter porto’.”

Foi ainda no Brasil, e com o seu pai, que Wanderley se iniciou na guitarra portuguesa e nas casas de fado. O pai, avô de Maria Emília, entretanto morreu, mas a ligação aos fados continuou. E em Portugal ele começou por tocar na Tipóia, casa que já não existe. À noite tocava lá e de madrugada tocava no Nelo. A filha, Maria Emília, foi-lhe seguindo os passos nessa aventura. “Um aninho ou dois mais tarde”, lembra ela. Com uma história curiosa. “O meu pai tinha um casaco em casa que tinha o cheiro dele, mistura de tabaco e do perfume que usava. Eu adorava aquele casaco, sobretudo porque tinha moedas lá dentro. Como tinha 13, 14 anos, e começara a fumar, pensei que ele não ia dar por isso porque também fumava. E tirava-lhe moedas do casaco para ir comprar tabaco. Claro que ele dava por falta das moedas. Até um belo dia em que eu ia a sair de casa, já tinha um pé fora e outro dentro, ele diz-me: ‘Vais comprar tabaco?’ Olhei para trás e disse: ‘Vou’. ‘Então vais e voltas aqui para falar com o teu pai.’” Não lhe deu nenhum sermão mas disse-lhe isto: “O tabaco faz mal. O pai não te vai dizer para não fumares, porque o pai fuma e isso era hipocrisia. Mas tabaco é luxo. Queres fumar? Então vais trabalhar. Faz o favor de aprender 15 fados que para a semana vais trabalhar com o pai na Tipóia.”

Ouviu três lições: “O tabaco faz mal; roubar está errado; e tens de ganhar o teu dinheiro.” A primeira noite na Tipóia, diz, “foi incrível mas assustadora. Antes havia o cuidado de chegar à casa de fados e perguntar à senhora dona [fadista veterana da casa], acho que era Maria José de Melo: ‘tenho aqui estes fados com estas letras; gostaria de saber se canta alguns destes temas, que é para eu saber o que posso cantar.’” Ele riscou-lhe um tema: o Fado Alfacinha. “Depois disse-me: ‘Também canto mais alguns. Mas canta.’ E cantei.” Com muitos nervos. “Tremia como varas verdes. Primeiro porque o meu pai, que estava lá a tocar, era o meu maior crítico. Mas o público adorou, as pessoas gostaram muito.”

Originais e clássicos

Maria Emília foi, depois, somando presenças em casas de fado. Tantas que o seu disco de estreia acabou por chamar-se Casa de Fado. “Acho que a única casa de fado do Bairro Alto onde não cantei foi n’A Severa, de resto cantei em todas.” Numa delas, o Forcado, gravou aos 15 anos um disco por sugestão do dono da casa, Os Fados Que Trago. Mas esse disco, visto à distância e dadas as circunstâncias em que surgiu, não conta para a sua carreira discográfica. Que começa agora, com Casa de Fado, disco já pensado por ela. “Maioritariamente, as escolhas são minhas. Mas tive ajuda do produtor, Carlos Manuel Proença. Estivemos muito em sintonia, os dois.” O disco tem vários fados tradicionais com letras originais (Linda Leonardo, Cátia de Oliveira, Mário Raínho, Nuno Miguel Guedes) e versões de fados clássicos (e até marchas) que fizeram história na voz de Amália, Beatriz da Conceição ou Anita Guerreiro. Maria Emília defende-os com uma voz límpida, de laivos castiços, com um estilar que ganhará com o amadurecimento mas já impressiona em passagens dignas de nota, como no fado Muito embora o querer bem.

No disco há, a par dos muitos fados, duas canções: De volta para o meu aconchego, conhecido clássico brasileiro de Dominguinhos e Nando Cordel, que ela canta muito bem em português do Brasil, acompanhada ao piano por Filipe Raposo (autor dos arranjos deste tema) e Minha paz, original que o brasileiro Edu Krieger escreveu a pedido dela. Casa de Fado vai ser apresentado ao vivo dia 30 em Lisboa, no Tivoli BBVA, às 21h30.

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