Luís Filipe Menezes e o enriquecimento injustificado

Os senhores deputados estão tão interessados em reforçar a transparência como eu estou em arrancar os dentes do siso.

Existe na Assembleia da República uma Comissão Eventual para o Reforço da Transparência no Exercício de Funções Públicas que leva muito a sério a palavra “eventual”. Ao seu quilométrico título corresponde uma quilométrica demora em apresentar propostas para combater as péssimas práticas da política portuguesa (está prometido um novo código de conduta dos deputados, regras mais apertadas quanto à exclusividade de funções e a regulação do lobbying) e enfrentar as suspeitas permanentes de favorecimento e de corrupção (igualmente prometido está um maior aperto no registo de interesses e uma nova legislação para o enriquecimento injustificado). Quando a comissão foi criada, em Abril de 2016, era suposto durar seis meses, e o PS queria um novo regime em vigor até final desse ano. Entretanto, o fim dos trabalhos foi adiado quatro vezes. A sua conclusão está agora prevista (rezemos) para 31 de Março de 2019, três anos após o nascimento da comissão. Os senhores deputados estão tão interessados em reforçar a transparência como eu estou em arrancar os dentes do siso.

E, no entanto, poucas coisas são tão importantes quanto a criminalização do enriquecimento injustificado, reclamada por quase todos os sectores da Justiça, com a excepção (óbvia) da Ordem dos Advogados. É verdade que o Tribunal Constitucional chumbou as propostas anteriores devido à inversão do ónus da prova, já que o crime era (erradamente) aplicável a qualquer cidadão. Mas o Parlamento pode ultrapassar essa objecção se centrar o crime na falta de veracidade das declarações de património e rendimento, obrigatórias para titulares de cargos políticos e de altos cargos públicos. As próprias Nações Unidas têm alertado para a necessidade de criminalizar o enriquecimento injustificado, e qualquer pessoa compreende que existe uma desproporção gigantesca entre a facilidade com que um político inocente comprova a licitude dos seus rendimentos ao Ministério Público e a dificuldade que o Ministério Público tem em comprovar a ilicitude dos rendimentos de um político corrupto.

Mas, se esta é a teoria, este domingo o PÚBLICO trazia um excelente exercício prático: o artigo intitulado “Familiares de Menezes receberam quase dois milhões em offshore quando este era autarca”. Esta é uma daquelas histórias em que a ausência do crime de enriquecimento injustificado no Código Penal deixa toda a gente mal. Deixa mal o Ministério Público, que andou anos a fazer uma investigação exigente, que certamente consumiu imensos recursos, que até conseguiu reconstruir um circuito de contas suspeitas, mas que depois se revelou incapaz de chegar à origem do dinheiro – e para provar este tipo de crimes é actualmente indispensável saber quem o praticou, como é que o praticou e porque é que o praticou. Deixa mal Luís Filipe Menezes, que foi para o Facebook queixar-se da injustiça do artigo, garantindo que os dois milhões provêm de um colégio que foi vendido pela família nos anos 70, mas que, com explicações coxas e que não foram tidas em conta pelo Ministério Público, vai ser sempre suspeito de alguma coisa. E deixa mal a Justiça no seu todo, já que, mais uma vez, aquilo que deveria ser um julgamento em tribunal foi substituído por uma notícia de jornal. De quem é a culpa de tudo disto? Será da Justiça? Será dos jornais? Não, não é. A culpa é daqueles senhores que andam no Parlamento há três anos a empatar a produção de leis de que o país precisa como de pão para a boca.

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