O Brasil, a conveniência da esquerda lusa e o postulado “Assis-Vicente”

O conteúdo deste postulado “Assis-Vicente” é surpreendente e é ele próprio um resultado do simplismo maniqueísta para que o populismo dos Bolsonaros deste mundo nos quer empurrar.

1. Não creio que precise de repetir que, se tivesse direito a voto na segunda volta das presidenciais brasileiras, teria votado em Fernando Haddad. Não hesitaria um segundo, mas também digo que o faria por simples exclusão de partes, optando pelo mal menor. Não tinha nem tenho qualquer ilusão acerca de Haddad e do PT. Repugna-me, aliás, que o candidato do PT não se tenha distanciado da máquina de corrupção política brasileira (em que o seu partido tem grandes responsabilidades) e que não tenha renunciado a um possível indulto de Lula. É, no entanto, evidente que o programa e o discurso de Bolsonaro punham em xeque princípios básicos do respeito pelos direitos humanos e pela democracia. E que isso se afigura inaceitável. Oxalá, ele não ponha ou consiga pôr em prática algumas dessas promessas. Infelizmente, porém, a experiência histórica (e contemporânea) ensina-nos que estes líderes populistas levam mesmo por diante algumas das suas mais implausíveis ameaças. Por outro lado, a destituição de Dilma e a eleição presidencial que agora culmina ilustram bem que o PT de Haddad, apesar de um padrão de governação profundamente negativo, não destruiu as instituições democráticas, não corroeu a independência judicial, não controlou a liberdade de expressão e de imprensa. E isso constitui uma diferença de natureza, de qualidade e de substância entre as duas propostas políticas.

2. Isto dito e esclarecido, compreenda-se bem o que afirmo e escrevo: felizmente não tinha o direito e o dever de votar nas eleições brasileiras. Felizmente. Não queria estar na pele dos cidadãos brasileiros e ser forçado a uma escolha deste tipo.

A primeira obrigação de qualquer comunidade política é, na verdade, assegurar a paz e garantir a segurança. Basta olhar para as estatísticas criminais, que são apenas uma parte dos dados relevantes, para atestar o grau de violência e de insegurança que grassa na sociedade brasileira. Numa sociedade marcada pelo clima “hobbesiano” de guerra de todos contra todos, é compreensível que a preocupação das famílias e dos cidadãos com alguns valores democráticos deixe de ser prioritária. De resto, sem um módico de segurança não há liberdade; não é por acidente que grande parte das declarações de direitos – incluindo a da constituição portuguesa – reúnem num único artigo o direito à liberdade e à segurança (art. 27.º da Constituição de 1976). É, por outro lado, também compreensível que os partidos e as personalidades que foram protagonistas de um sistema de corrupção generalizado sejam objecto de uma onda popular de rejeição. E que, em se tratando de uma democracia, muitos estabeleçam a ligação demagógica entre a corrupção e o regime democrático. Não se trata de nenhuma estreia ou novidade política. Note-se bem, explicar estas causalidades não implica em nada transigir ou apoiar declarações ou posições chocantes ou repulsivas. Estas cadeias de causalidades são, aliás, extremamente simplistas, mas convém não olvidar que é precisamente por causa do seu imediatismo e simplismo que elas vingam e prevalecem em certas correntes de opinião.

3. Feito este ponto de ordem – que poderia alargar-se a outras dimensões (designadamente, a da deterioração acelerada da situação económico-social) –, convém despender alguns caracteres com uma posição recentemente defendida por Francisco Assis e Vicente Jorge Silva. Ambos são militantes de esquerda, bem conhecidos pela sua independência e moderação. Ambos assumiram com desassombro e até brilho a denúncia dos perigos e riscos da candidatura e (agora) da eleição de Bolsonaro. Justamente porque independentes e moderados, nem sempre foram figuras benquistas de alas mais esquerdistas do PS e, em especial, dos seus parceiros de entendimento parlamentar. Neste caso, e muito naturalmente, foram fortemente saudados por esses sectores. Entretanto, e com alguma surpresa, ambos enveredaram por uma qualificação muito crítica de uma série de personalidades de quadrantes mais centrais ou de centro-direita, que tomaram posições mais tímidas, que ficaram silentes ou que declaradamente não quiseram alinhar uma posição. E, para além destas, de todas aquelas que, de uma forma ou de outra, procuraram, como acabo de fazer, esboçar uma tentativa de compreensão e de explicação da deriva eleitoral de dezenas de milhões de brasileiros. Nisto seguiram, de resto, o rasto e o rastilho da esquerda mais radical. Esquerda radical essa a quem convém, a todo o transe, inventar um fantasma de uma velha direita lusitana que esteve sumida e disfarçada durante quarenta anos, mas que agora, por magia “bolsonárica”, renasceu das cinzas. Chega a ser caricato ouvir, pela primeira vez, dirigentes do Bloco e do PC derramar lágrimas de crocodilo pela derrocada da direita moderada e democrática, quando passaram a vida inteira a dizer que a dita direita, por definição, não podia ser nem moderada nem democrática. E, já agora, que o centro não passava de um disfarce dessa “direita” dinossáurica e passadista. Não faltou por aí, em quiosques e esquinas, proclamasse que a direita reacionária, repressiva, antiliberal e antidemocrática finalmente tinha voltado a sair do armário.

4. O conteúdo deste postulado “Assis-Vicente” é surpreendente e é ele próprio um resultado do simplismo maniqueísta para que o populismo dos Bolsonaros deste mundo nos quer empurrar. É altamente conveniente para a estratégia de médio-prazo da esquerda radical e para a táctica de curto prazo do PS. Mas é enganador e não passa ele próprio de um artefacto ou subproduto sofisticado do populismo.

Marcelo e Costa, com sentido institucional e sem estados de alma, felicitaram Bolsonaro. Ninguém tugiu nem mugiu. Do meu ponto de vista, bem. Outros não felicitam, limitam-se a expressar uma visão mais complexa de uma realidade de que nem sequer são parte. Mas quase ficam no grupo dos filo-fascistas. Do meu ponto de vista, mal. Mesmo mal.  

NÃO. Emmanuel Macron. Dois erros: defender um exército único europeu; admitir que os EUA se possam tornar um inimigo. Uma forte cooperação europeia na defesa é benvinda, mas sem prescindir da NATO.

NÃO. Donald Trump. Ao demitir o Procurador Geral Jeff Sessions, cuja isenção na investigação russa se afigurou exemplar, Trump mostra a sua indiferença às garantias do Estados de Direito.

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