A uberização da União Europeia?

E se, na decorrência da revolução digital, tivesse chegado a hora da uberização da União Europeia, em aplicação do princípio geral de subsidiariedade que informa os tratados europeus?

Na sequência do artigo anterior sobre o sexto continente e a nação-internet (PÚBLICO, 18 de outubro), pode perguntar-se, nesse contexto, que futuro para o atual modo de governação europeu? E se, na decorrência da revolução digital, tivesse chegado a hora da uberização da União Europeia, em aplicação do princípio geral de subsidiariedade que informa os tratados europeus?

Vejamos os termos do problema. Os princípios de subsidiariedade, proximidade e proporcionalidade estão inscritos nos artigos 5.º, n.º 3 e 10.º, n.º 3 do tratado de união europeia e nos protocolos anexos relativos a estes princípios e ao reforço do papel dos parlamentos nacionais no processo de decisão comunitário. O artigo 5.º, n.º 3, nomeadamente, diz o seguinte:

Em virtude do princípio da subsidiariedade, nos domínios que não sejam da sua competência exclusiva, a União intervém apenas se e na medida em que os objetivos da ação considerada não possam ser suficientemente alcançados pelos Estados-Membros, tanto ao nível central como ao nível regional e local, podendo, contudo, devido às dimensões ou aos efeitos da ação considerada, ser mais bem alcançados ao nível da União.

As instituições da União aplicam o princípio da subsidiariedade em conformidade com o Protocolo relativo à aplicação dos princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade. Os Parlamentos nacionais velam pela observância do princípio da subsidiariedade de acordo com o processo previsto no referido Protocolo. 4.

Lembremos o fundo da questão

Lembremos o fundo da questão. No estado atual da política europeia, em plena era digital das redes e comunidades distribuídas, nada mais paradoxal e contraproducente do que a megalomania e omnipresença unionistas, a sua razão pretensiosa, unificadora e normalizadora, a superioridade política e institucional da ordem burocrática da União Europeia, tudo o que as redes sociais distribuídas não gostam. E o que pensam as gerações mais jovens, filhas da nação-internet e da revolução digital? Elas nunca suportarão a megalomania e a omnipresença das instituições europeias, pela simples razão de que elas apostam na “desintermediação institucional e burocrática”. Ora, este é o princípio, mesmo, da chamada “uberização” que está, assim, no mesmo comprimento de onda do princípio de subsidiariedade (um princípio de proximidade aos problemas e sua resolução).

A utopia europeia, a aventura europeia, estão, por isso, numa encruzilhada, pelo menos na sua atual configuração. De resto, não vale a pena ocultar que o longo movimento de descida para a sociedade civil irá prosseguir, que a representação política será cada vez mais direta e que as práticas quotidianas estarão cada vez mais ligadas à autonomia e ao livre arbítrio de cada cidadão, onde se incluem a indignação e o protesto, mas, também, o combate e a decisão políticos. Se a este movimento centrífugo das democracias atuais, por vezes perigosamente nacionalista e comunitarista, se opuser a arrogância, a sobranceria e o racionalismo unionistas, o unitarismo unionista, então temos sérias razões para ficar preocupados.

E o que pensa a União Europeia desta tendência, em que medida a revolução digital irá contribuir para a “destruição criativa” das instituições e da governação europeias nas suas relações com os estados nacionais e os cidadãos europeus?

A história diz-nos que a viagem já vai longa e que nas várias esferas da vida não há fatalismos inultrapassáveis. Passámos do absolutismo para o parlamentarismo, das teocracias de estado para as convicções pessoais, das criações sagradas para as criações profanas, das famílias impostas para as famílias escolhidas, das servidões da ignorância para o livre arbítrio do pensamento. O mesmo acontecerá com a democracia europeia e o estado pós-nacional no que diz respeito às consequências da revolução digital. A atual desafeição emocional e política dos cidadãos pelos assuntos europeus também passa por aqui.

A revolução digital, a uberização e a governação europeia

A revolução digital e a governação europeia cruzam-se em três planos principais: em primeiro lugar, a regulação do capitalismo digital, sobretudo a sua extra-territorialidade fiscal, no quadro do mercado único e do multilateralismo liberal, em segundo lugar, a regulação dos direitos de cidadania em sentido amplo, seja na proteção de dados pessoais como na garantia de direitos sociais e laborais, por fim, a regulação da chamada “governação algorítmica” no âmbito do processo de decisão e implementação das políticas públicas europeias, a denominada governação multiníveis.

Aqui chegados, a pergunta pertinente, nesta altura, é a seguinte: está a União Europeia em condições de aceitar a “destruição criativa” e aplicar a si própria os princípios que recomenda a terceiros, criando no interior da administração europeia um hub de inovação por via de instituições-plataforma que otimizam recursos e permitem a inovação em larga escala, ao mesmo tempo que promove e providencia uma rede europeia de administração pública e um mercado único digital muito mais descentralizados e distribuídos? Ou, dito de outro modo, está a União Europeia em condições de lançar o “processo de desintermediação/uberização” da sua própria organização burocrática, dando, assim, finalmente, materialização à chamada “subsidiariedade descendente” em benefício de uma Europa mais próxima dos cidadãos, das cidades e regiões?

Como dissemos, no momento em que a política, como instância superior de representação e arbitragem coletivas, passa por uma crise generalizada e assistimos a um regresso do tribalismo identitário sob múltiplas formas, uma organização política como a União Europeia, pela sua omnipresença e razão pretensiosa, é especialmente visada. E tanto mais quanto aqueles três planos de interação revelam alguma ambiguidade de propósitos. Senão vejamos.

No que diz respeito à regulação do capitalismo digital e à sua extra-territorialidade, existe um espaço político enorme entre o ultraliberalismo das grandes plataformas tecnológicas e o capitalismo das pequenas e médias plataformas colaborativas que precisa de ser preenchido. Aqui, a uberização e a política regulatória são, por enquanto, uma caricatura, basta ver a política fiscal aplicável aos serviços digitais.

No que diz respeito à regulação da proteção de dados pessoais e ao reajustamento do modelo social europeu decorrente da revolução digital, importa assinalar a publicação recente do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD) e seguir a atividade do Comité Europeu de Proteção de Dados (CEPD), um organismo da União Europeia dotado de personalidade jurídica e constituído pelas autoridades de controlo em matéria de proteção de dados de cada Estado-Membro e pela Autoridade Europeia para a Proteção de Dados. A comissão nacional de proteção de dados (CNPD) participa ativamente nos diferentes grupos de trabalho com vista a uma aplicação coerente das normas legais europeias. Já a relação entre uberização e direitos sociais do trabalhador é muito mais clara, pois a tendência mais evidente aponta na direção de “menos trabalho por conta de outrem, mais trabalho por conta própria”. Quer dizer, onde antes havia contrato coletivo ou individual de trabalho haverá agora uma relação meramente transacional ou comercial entre duas partes, na maioria dos casos uma relação profundamente desigual. Aqui, a uberização, como relação contratual emergente, e a política regulatória laboral, como quadro de negociação e concertação social, passam, neste preciso momento, por uma verdadeira revolução social.

Finalmente, no que diz respeito à “governação algorítmica”, instrumento de normalização das relações burocráticas entre a União e os seus estados membros e mecanismo disciplinar de punição de comportamentos desviantes, o mais provável é que os corpos constituídos no interior da administração europeia, as suas elites burocráticas, se orientem na procura de um “novo normal” na União Europeia tirando partido da uberização e das suas diversas plataformas colaborativas em muitas áreas da política europeia onde os procedimentos algorítmicos são uma regra de ouro. Mas sem prejudicar a sua própria condição e estatuto, e eles sabem fazer isso melhor que ninguém. Digamos que, também aqui, é preciso mudar alguma coisa para que fique tudo na mesma.

Notas Finais

Do que se disse, retira-se que a uberização é, ainda, um território muito movediço e que se presta a várias leituras e aplicações. Vejamos, a terminar, uma síntese dos aspetos mais controversos.

Em primeiro lugar, a revolução digital põe em causa não apenas a intermediação económica e comercial, mas, a prazo breve, também, a intermediação política e a fonte de legitimação democrática e representativa tal como nós a conhecemos nas sociedades ocidentais, razões mais do que suficientes para que o conservadorismo político-partidário, mas, também, burocrático, tome as medidas defensivas e cautelares que se justificam nesta conjuntura. Seja como for, a revolução digital é imparável e mudanças profundas ocorrerão nas relações entre a sociedade civil, o estado e as plataformas digitais.

Em segundo lugar, quando se observa o que diz o artigo 5.º, n.º 3, a propósito do princípio de subsidiariedade, fica muito claro a sua duplicidade quando afirma: “podendo, contudo, devido às dimensões ou aos efeitos da ação considerada, ser mais bem alcançados ao nível da União”. Quer dizer, é corporativamente mais fácil justificar a subsidiariedade ascendente (o móbil das elites europeias) do que utilizar o argumento da uberização (a desintermediação e a desburocratização) para justificar a colaboração interpares (peer to peer) e a subsidiariedade descendente.

Em terceiro lugar, no estádio atual da revolução digital, o vazio de poder criado pela inovação disruptiva apanhou a administração-regulatória bastante desprevenida, impreparada e impotente. Estamos hoje em plena sociedade algorítmica rodeado de plataformas e aplicações por todos os lados, enquanto se aguarda que a nova ideologia regulatória, talvez de origem europeia, com o mercado único digital, tome conta da ocorrência e ponha alguma ordem no sistema económico, em especial no mundo do trabalho que oscila, cada vez mais, ao sabor da economia das plataformas tecnológicas e digitais.

Em quarto lugar, a ideologia da uberização transporta-nos até à “modernidade líquida”, nas palavras do filósofo Zygmunt Bauman: tudo fluido, precário, transitório, passageiro, como tudo o que a UBER transporta. Estamos, pois, em trânsito acelerado do precariado industrial para o pronetariado digital (Observador, 02.05.2017), os novos escravos das redes e aplicativos e das suas “estrelas de reputação”, sempre no interior do capitalismo neoliberal e sujeitos a uma clara regressão civilizacional em matéria de direitos económicos, sociais e humanos. Tem a União Europeia algo a dizer sobre os efeitos externos negativos da revolução digital e da uberização em particular? É preciso avisar, em especial, os nativos digitais mais distraídos para esta “sedução virtual” e para a ilusão do auto-empreendedorismo acessível que é passada através de uma presumida relação pós-salarial.

Em quinto lugar, o acesso aos dados públicos cria uma grande zona de interface com a sociedade civil e abre uma via experimental para testar uma nova administração pública de participação interativa; este é, porventura, o pretexto que faltava para fazer explodir a administração europeia em múltiplos modelos e formatos de plataforma colaborativa e abrir o caminho para novas categorias e tipologias de bens e serviços, que nesta altura não é possível prever, como, por exemplo, os “comuns colaborativos” em regime de coprodução com as administrações nacionais e regionais e as plataformas representativas dos cidadãos-utentes. Estes regimes de coprodução podem ser outros tantos núcleos de inovação no interior da administração e dar origem a dezenas de start up que emergirão como extensão de serviços públicos.

Finalmente, “acesso livre e governação aberta e interativa” significam uma pequena revolução na forma de fazer política pública e regulação de política pública; cobrir todo o território, conectar todos os cidadãos, cumprir um programa de literacia digital, atribuir uma identidade digital aos cidadãos, criar regras para a proteção de dados pessoais, definir as condições e os termos para a cogestão dos bens comuns colaborativos, assim como atribuir uma licença colaborativa para a sua utilização ulterior, eis algumas variáveis essenciais para a política regulatória do estado-plataforma nos próximos anos.

Estamos em 2018, cada vez mais próximos das eleições para o Parlamento Europeu. No plano europeu, o projeto político faz navegação à vista, cada vez mais encurralado e incapaz de providenciar capital simbólico suficiente. Não surpreende, por isso, que retornem os velhos laços comunitários, quase tribais, em redor de identidades específicas, de reivindicações multiculturalistas e indignações de circunstância. No plano nacional, a nação, privada de discurso unificador e mobilizador, presta-se a ser apropriada por grupos sociais particulares e degrada-se em ideologia mole alimentada pela tribalização das redes sociais. A falta de líderes políticos reputados priva a União Europeia, a Nação e o Estado, de ação histórica coletiva na boa direção.

Na atual conjuntura europeia, um impulso político vigoroso na área-problema das migrações, com soluções efetivas nos países de origem e de trânsito, seria providencial, e uma comunicação política mais poderosa na explicação e divulgação do valor acrescentado europeu, usando as plataformas sociais e os milhares de jovens que hoje beneficiam dos programas europeus, seria, também, uma linha de rumo na boa direção. Talvez a uberização possa também ajudar. Estou convencido de que a sociedade política europeia teria muito a ganhar em organizar-se através do estabelecimento de uma rede de comunicação entre os parlamentos nacionais e mesmos regionais, coroados pelo Parlamento Europeu enquanto instância de síntese (uma rede parlamentar). No mesmo sentido, seriam instaurados procedimentos similares para os conselhos nacionais de concertação social, coroados por um conselho europeu de concertação social. O mesmo se poderia fazer com as regiões e os municípios e com os conselhos do ensino superior, já para não referir os “parlamentos jovens” em várias áreas. A uberização pode ser, assim, um poderoso instrumento de pressão corporativa e lobbying.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

Sugerir correcção
Comentar