O Presidente Desapareceu — como Bill Clinton usou um avatar para salvar a América e o mundo ocidental

O antigo Presidente dos EUA revisita o seu tempo na Casa Branca num romance escrito com o mestre do suspense James Patterson. O livro, que acaba de ser posto à venda em Portugal (Porto Editora), vai ser adaptado para série de televisão.

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Bill Clinton estreia-se na ficção com "O Presidente Desaparecido" Reuters/MIKE SEGAR
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James Patterson é um reconhecido autor de livros de suspense Danny Moloshok

O antigo Presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, e o autor de livros de suspense, James Patterson, juntaram-se para escrever um romance, uma manobra de marketing genial que equivale a Ruth Bader Ginsburg, juíza do Supremo Tribunal, lançar um dueto com a cantora Katy Perry.

Os termos do acordo entre Clinton e Patterson não foram revelados, mas não surpreende que, nos agradecimentos, a primeira pessoa mencionada seja o super-agente de Washington, Robert Barnett. Pobre Hillary Clinton, só aparece em terceiro lugar, com um agradecimento pelo seu “constante entusiasmo e conselhos para não fugir da realidade”, exactamente o mesmo que escreveu no meu livro de finalista de liceu uma rapariga que não queria ser mais do que minha amiga.

Este não é o primeiro livro de ficção de um Presidente americano: em 2003 Jimmy Carter publicou um romance sobre a Guerra da Independência chamado The Hornet’s Nest [O Ninho de Vespas], e Donald Trump é perito em fantasias auto-eróticas.

Mas O Presidente Desaparecido é, ainda assim, um acontecimento extraordinário. Como explica a editora, é o primeiro romance “baseado em pormenores que só um Presidente pode conhecer”. A CIA pode ficar descansada. De certeza que nenhuma caneta de feltro secou por riscar material classificado no manuscrito. O Presidente Desaparecido revela tantos segredos sobre o governo dos Estados Unidos como a Pantera Cor-de-Rosa revela sobre o governo de França. Porém, revela muito sobre o ego de um ex-Presidente.

O romance abre com o comandante-em-chefe, o Presidente Duncan, a preparar-se para enfrentar uma comissão da Câmara de Representantes. A sua equipa aconselhou-o a não testemunhar. “Os meus opositores odeiam-me mesmo”, pensa Duncan, mas “aqui estou”: um homem honesto com bom aspecto, ainda que um pouco selvagem, e um apurado sentido de humor. Perante um painel de políticos oportunistas que o querem destituir. Duncan sabe que parece “um advogado” apanhado num “debate semântico” em jurisdiquês. Mas bolas, ele está a tentar salvar os Estados Unidos! Apesar de o Congresso insistir que ele explique o que tem andado a fazer, ele não pode dar pormenores da negociação secreta com um terrorista empenhado em destruir o país.

Enquanto revisitação ao seu próprio escândalo de destituição, este é um exercício maravilhoso. A transfiguração de William Jefferson Clinton em Jonathan Lincoln Duncan devia ser estudada nos departamentos de Psicologia nos próximos anos. Os dois homens perderam os pais cedo e ultrapassaram circunstâncias adversas para se tornarem governadores. Os dois homens conheceram as suas brilhantes mulheres na faculdade, e os dois casais têm um filha.

Depois chegam as diferenças: em vez de escapar ao serviço militar, o Presidente Duncan é considerado um herói de guerra. Em vez de ter um caso com uma estagiária na Sala Oval da Casa Branca, Duncan foi torturado no Iraque pela Guarda Republicana. E em vez de estar envolto em rumores vários sobre casos extra-matrimoniais, Duncan tem devoção pela mulher que morreu, e vive agora num aparente celibato.

Até os detalhes mais insignificantes do livro ecoam a era Clinton: a mais próxima conselheira de Duncan é uma mulher olhada com desconfiança por ter feito uma referência ao sexo oral.

Mas à frente! Apesar de tudo, este é, pelo menos parcialmente, um romance de James Patterson, e rapidamente encontramos os seus famosos capítulos de duas páginas. A acção do livro de quase 500 páginas decorre em poucos dias, quando um terrorista chamado Suliman Cindoruk tenta activar um vírus informático criado por uma bela separatista abkhaze de corpo ágil e bem definido e um “apetite voraz” na cibernética e “no quarto”. O vírus infectou todos os servidores, computadores e aparelhos electrónicos da América.

Maldita sejas, Internet!

Em poucas horas, os registos financeiros, médicos e judiciais do país serão apagados: os transportes e o sistema eléctrico falharão. Faminta e sem Twitter, sem acesso a pornografia, notícias falsas e fotografias de gatinhos, a América mergulhará na Idade das Trevas.

Só um homem, um homem formoso, pode impedir isto, mas não é fácil para o Presidente dos Estados Unidos sair da Casa Branca para frustrar os planos de terroristas internacionais, sobretudo com os congressistas à perna, a quererem destituí-lo. Felizmente, Duncan tem a ajuda de uma actriz que é “uma das mais bonitas mulheres no planeta”. Uma pequena barba, um toque de lápis nas sobrancelhas e voilá: o líder do mundo livre está pronto para está disfarçado para defender a civilização ocidental.

Infelizmente, o título O Presidente Desapareceu perde algum sentido ao longo da obra. Afinal de contas, Duncan narra a maior parte da história, o que quer dizer que sabemos sempre por onde ele anda. E à medida que percorremos os capítulos, é fácil perceber qual dos autores está ao leme. Às vezes, as páginas mergulham no DEFCON 1 (o estado de alerta das Forças Armadas americanas), com choques entre automóveis, tiroteios espectaculares, helicópteros Viper e uma assassina grávida com o nome de código Bach que “só é conhecida pelo seu género e pelo nome do seu compositor favorito”. Adivinha-se ali a escrita de Patterson.

Mas na maior parte de O Presidente Desapareceu, Patterson parece ter-se submetido ao Primeiro Escritor. E isso é um problema. Quando pegamos num thriller tonto como este, queremos modelos em lingerie a disparar mísseis a partir de asas delta; Clinton dá-nos membros do governo a fazerem perguntas uns aos outros pelo Skype.

O Presidente Duncan passa imenso tempo a consultar líderes mundiais, lembrando-nos que “os Estados Unidos estáveis significam segurança para Israel”. Dá-nos uma lição sobre a verdadeira função do governo e sobre a responsabilidade da NATO. Alguns segmentos lêem-se como ralhetes a Donald Trump: “Estarmos rodeados de bajuladores é meio caminho para o fracasso”, diz Duncan. Mas a não ser que alguém na Fox News leia estas passagens, é duvidoso que o actual Presidente se depare com estes sábios conselhos — e nós já os conhecemos.

Em vez dos prometidos pormenores sobre os bastidores que “só um Presidente conhece”, o romance está repleto de moralismos tépidos. “O que aconteceu às notícias factuais?”, pergunta Duncan numa crítica ao jornalismo que só se interessa pelo número de clicks. “Perdeu-se a confiança”, lamenta o avatar de Bill Clinton.

O maior problema, porém, é o enredo ser muito limitado. Não há nada parecido com um pânico nacional, não há sinal do mundo fora desta narrativa literária. Grande parte do enredo decorre numa sala onde nerds tentam quebrar o código de um computador. E esta luta é tão excitante como ver o esforço dos nossos pais para se lembrarem das palavras-chave dos seus Facebook: “Escreveste com um ‘o’? Tentaste com maiúsculas?”
É o que basta para deixar o leitor nostálgico da Idade das Trevas.
 
Exclusivo PÚBLICO/"The Washington Post"

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