Na Ericeira, a onda do surf está a expulsar os residentes

Encontrar casa na Ericeira não é tarefa fácil. Um quinto das casas da vila já são alojamento local e a câmara de Mafra decidiu suspender os novos registos para tentar garantir que há casas para os locais.

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O registo de novos alojamentos será suspenso no centro da Vila Sebastião Almeida
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Conhecida como meca do surf, a Ericeira recebe muitos turistas que vem para experimentar as suas ondas Rui Gaudêncio
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Dos 1093 prédios de uso habitacional, aproximadamente 20% apresentam registos de AL Rui Gaudêncio

O mês de Novembro na vila da Ericeira já foi diferente do que é agora. O frio húmido vindo do mar repele os locais das ruas mas na Praça da República, também conhecida como Largo do Jogo da Bola, o vento dispersa os diálogos que ressoam noutros idiomas. O rebuliço nos cafés e nas lojas é cada vez mais provocado pelos estrangeiros que escolhem este núcleo piscatório para passar temporadas, ocupando as casas do centro da vila.

Em Outubro de 2011, a Ericeira tornou-se Reserva Mundial de Surf, classificação integrante de um programa lançado pela Save the Waves Coalition, uma organização não-governamental criada em 2009. A partir do momento em que a vila passou a fazer parte do programa que pretende proteger os habitats mundiais do surf, as coisas começaram a transformar-se. “Até então tinha quatro ou cinco hostels”, diz Pedro. A vila desenvolveu-se muito graças ao público de todo o mundo que era atraído pelas ondas das praias da região. E com os turistas vieram os hostels e os alojamentos locais – que contribuíram muito para desenvolver a localidade. 

Apesar de as queixas de falta de habitação para residentes não terem chegado à câmara, o município mafrense decidiu, à semelhança do que foi feito na capital, suspender, por um ano, a autorização de novos alojamentos locais (AL) para fins turísticos no centro da Ericeira.

A decisão, afirma a autarquia, é justificada pelo número crescente de estabelecimentos daquele tipo que têm surgido na vila e para que a procura de habitação não seja comprometida: dos 1093 prédios de uso habitacional, aproximadamente 20% apresentam registos de AL. 

Ao PÚBLICO, garante a autarquia, a decisão não teve por base queixas de falta de habitação para moradores, mas, nas ruas da vila, a história é outra.

Sílvia Pais, de 27 anos, trabalha num dos vários estabelecimentos de material e roupa de surf que povoam a praça. Cresceu na vila piscatória onde todos se conheciam, mas quando chegou a altura de organizar a vida e arranjar casa própria, viu-se obrigada a deixar o local onde passou a infância e a mudar-se para Mafra, a oito quilómetros da Ericeira.

“Cheguei a ir a uma garagem que fora transformada num T0”. Sílvia descreve o espaço improvisado que lhe foi proposto por um particular que o tentava arrendar como indigno: “Tinha uma casa de banho miserável, não tinha janelas e pedia 400 euros de renda”. Depois de muito procurar, a jovem chegou a uma conclusão que é comum a outros ericeirenses: os preços das casas na vila são bastante elevados para qualidade dos imóveis disponíveis.

“O que havia de bom está a ser transformado em alojamento local e hostels e o que é construído de raiz é uma fortuna”, diz a lojista. Uma amiga, conta, procurou um T1 na zona e tudo o que encontrou rondava os 450 euros mensais. “Sempre tudo velho e cheio de humidade”, remata.

Pedro Pimenta, de 29 anos, é nascido e criado na terra que a família escolheu para viver. Trabalha num dos vários restaurantes do centro da vila e tem a sorte de ter uma “casa de família”. Actualmente é onde vive, dado que, à semelhança de outros locais no país, é difícil arrendar uma habitação a um preço que não seja inflacionado. “Na Ericeira, qualquer cantinho, neste momento, é alojamento local ou um hostel”, resume.

"Já não há locais”

Apesar de a medida tomada, o executivo não deixa de reconhecer o contributo do AL na requalificação dos vários edifícios distribuídos pela vila, mas considera que esta interrupção é necessária para que se possa regulamentar o seu crescimento.

Assim sendo,"por antecipação", argumenta a câmara, "pretendeu-se promover o equilíbrio entre as ofertas de habitação e de alojamento local", com dois objectivos fundamentais: garantir a qualidade de vida dos residentes e a sustentabilidade do destino turístico”. E diz que a decisão parte do “diagnóstico da situação actual e a análise das perspectivas futuras de evolução da oferta turísticas”, realizadas no âmbito das competências de planeamento e ordenamento do território.

Mario Wehle, 36 anos, é alemão e está na Ericeira desde 2013. Antes de se mudar, passou seis anos na Malásia até que decidiu fixar-se na pequena povoação banhada pelo Atlântico. Foi assistindo e participando na transformação da vila. E é um dos responsáveis pela Magic Quiver, uma loja de surf que, detém um café e apartamentos de AL. 

Reconhece que a situação está a tornar-se “insustentável”. Wehle considera a decisão da câmara mafrense “muito positiva”. E, nas suas palavras, o aparecimento de AL “ficou fora de controlo”, dado que o número de alojamentos aumentou num curto espaço de tempo, sem que a regulamentação tenha conseguido dar resposta. Aponta, inclusivamente, o exemplo de Barcelona, onde "os turistas têm dificuldades em encontrar experiências autênticas", pois a cidade tem mais turistas que habitantes locais. "É necessário encontrar um equilíbrio entre locais e oferta turística", considera, em relação à vila da Ericeira. 

 Ainda que considere, finalmente, ter sido dado um primeiro passo, Mario teme que estas medidas não sejam suficientes para conter o aparecimento de novos alojamentos. “Há muita gente que não cumpre os requisitos para arrendar casa e esta regulamentação poderá não ser eficaz na fiscalização”.

Quando a medida tampão entrar em vigor, diz Mario,  o surgimento de novos AL poderá deslocar-se para localidades próximas. Ribamar ou Ribeira d’Ilhas são lugares apetecíveis, afirma. Wehle considera essa possível deslocação positiva, desde que se regulamente também nesses locais, para não se correr o risco de chegar à situação de pressão do mercado imobiliário no centro da vila, adverte.

“Estão a fazer a Ericeira perder a sua essência”, considera Pedro. A irmã foi viver para Mafra, tal como outros. O motivo é o mesmo que o de Sílvia: não conseguiu encontrar uma casa a um preço razoável. Ao passo que na Ericeira um T3 pode custar 750 euros mensais, em Mafra, o preço desce consideravelmente até aos 500 ou mesmo 450 euros. “Houve muita gente a ter de fugir daqui”, clarifica sobre a situação que se vive na vila.

Dinheiro fácil 

Pedro recorda com saudade um episódio que o marcou. Em frente à sua casa, havia uma moradia de família. Conhecia quem lá morava. Até ao dia em que os vizinhos se foram embora e a habitação deu lugar a um AL. “Essa é uma maneira fácil de ganhar dinheiro em pouco tempo”. O empregado de mesa reconhece que para quem quer arranjar habitação a situação está difícil, mas que a proliferação desse tipo de alojamento turístico contribuiu bastante para o crescimento da Ericeira. Considera, pois, que há que encontrar um meio-termo, para que nenhuma das partes seja afectada.

“As pessoas vêem oportunidades de negócio e querem retirar os inquilinos das casas” para fazer AL. Por noite, diz, chega-se a pagar 70 euros", repara também Bruno Brito, de 35 anos, dono de uma loja no centro da vila.

Mario e os outros membros da Magic Quiver tinham alguns apartamentos espalhados pela Ericeira, mas decidiram desfazer-se deles. “Queríamos centralizar o negócio”, e a melhor maneira que encontraram para o fazer foi devolver ao mercado alguns imóveis que antes serviam para alojamento.

Para os comerciantes Sílvia e Bruno, a densidade de moradias e apartamentos dedicados a receber turistas, é visível no negócio. “Sente-se a quebra”, diz Bruno. “Já não há os clientes habituais porque foram despejados ou não têm poder de compra”. Sílvia corrobora a afirmação e acrescenta que, há uns anos, depois do Verão tudo voltava à normalidade. “Agora a época alta é de Abril a Outubro, quando anteriormente era de Junho a Setembro”.

Maria de Lurdes, agente imobiliária da Ericeira Real Estate, trabalha exclusivamente com imóveis vocacionados para AL. A carteira da empresa, no que diz respeito a esse segmento, é significativa. De momento, tem 30 imóveis espalhados por toda a vila. “As pessoas vêm ter connosco para nos entregar as suas casas. Mas nós também somos proactivos e tentamos angariar clientes”.

Em média, um T1 ou T2, durante o mês de Agosto, ronda valores entre os “500 e 550 euros por semana”. Em Junho e Setembro, garante, os valores são mais baixos. E em Novembro, então, ainda mais. Encontra-se apartamentos com tudo incluído por 250 euros semanais, nesta altura do ano.

O município de Mafra considera que a deliberação, que aguarda aprovação em Assembleia Municipal, contribuirá para assegurar “uma dinâmica económica consistente e sustentável”. Um dos objectivos, refere o executivo, é a contínua classificação da oferta existente. Nesse sentido, a autarquia deliberou criar uma nova equipa de fiscalização técnica para, de imediato, realizar vistorias a fim de acompanhar e verificar as condições de higiene, o nível de conservação do edifício e dos serviços prestados por estes estabelecimentos.

A suspensão vigorará até à aprovação da regulamentação municipal que definirá as regras para o AL para todo o concelho de Mafra. Uma modalidade de alojamento que, reconhece a autarquia, é de extrema importância para a região.

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