“Estes corpos fora da (hetero)norma já são resistência desde sempre”

Com Bolsonaro no poder, diz Tales Frey, curador, os artistas terão de “optar pelo discurso mais metafórico para driblar uma violenta tirania”.

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Élle de Bernardini

O artista, performer e crítico de arte Tales Frey, curador de Adorno Político, fala sobre os vários artistas e corpos fora das normas de género e dos padrões de beleza dominantes que convivem nesta exposição. Brasileiro a residir em Portugal, diz que, com Bolsonaro no poder, os artistas no Brasil terão provavelmente de “optar pelo discurso mais metafórico para driblar uma violenta tirania”.

Qual é a abordagem artístico-política adjacente à curadoria desta exposição?
Adorno Político tem uma relação directa com a minha tese de doutoramento desenvolvida na Universidade de Coimbra e defendida em 2016, por meio da qual reflecti sobre a mobilização do corpo em práticas performativas e ritualísticas que se articulassem, de formas distintas, com a moda e a religiosidade. A performance e a body art estão muito presentes em grande parte dos trabalhos que desenvolvo e dos que me interessam em arte. Com Da Mata, o meu parceiro de vida e arte, com quem mantenho a eRevista Performatus, realizei uma série de eventos relacionados com a performance, como a Mostra Performatus #1 na Central Galeria de Arte em São Paulo e a Mostra Performatus #2 no SESC Santos, além da exposição Trabalha-dores do Cu no Maus Hábitos, em 2015. Em todos esses eventos, propusemos pensar o corpo como signo de micropolíticas variadas e, naturalmente, Adorno Político é um desdobramento dos projectos anteriores.

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“Todas as obras da exposição ponderam sobre o que o sistema hegemónico estimula para ser consumido”, diz Tales Frey, curador da exposição

Em relação aos artistas escolhidos, o que os une, o que os diferencia?
O título dado à exposição não é nada metafórico. O elo entre um(a) artista e outro(a) é justamente a maneira como os seus corpos se relacionam com adornos ou indumentos sob a estratégia de criarem versões ou subversões, sob o anseio de oferecerem posicionamentos críticos a quem acessa cada uma das obras. Todas as obras reavaliam o corpo taxado por belo através da ironia ou da superexposição de uma norma vigente codificada, e todas elas ponderam sobre o que o sistema hegemónico estimula para ser consumido. Algumas e alguns artistas detonam a tão ultrapassada heteronormatividade compulsória, como é o caso da Lyz Parayzo, da Élle de Bernardini e Rafael Bqueer, outras e outros os preconceitos raciais (Tiago Sant’Ana e Suelen Calonga), enquanto Priscilla Davanzo, André e Letícia Parente, Gal Oppido, Marcela Tiboni e Joana Bueno ironizam os padrões de beleza. Lenora de Barros, Nino Cais e Renan Marcondes propõem alternativas mais poéticas, mas sem deixarem de lançar críticas incisivas relacionadas com o aprisionamento dos corpos. Já em Andressa Cantergiani, percebemos uma sugestão mais utópica de harmonização do seu corpo com o mundo e, assim, com as diferenças.

Com Jair Bolsonaro eleito presidente do Brasil, considera que Adorno Político ganha uma dimensão de resistência ainda mais forte? O que mudará no contexto artístico do país?
O futuro é incerto e, no caso do Brasil, espero que seja menos terrível do que tudo o que já foi anunciado pelo próprio Bolsonaro, ao proferir o seu ódio contra tudo o que não é modo de vida hegemónico, encorajando pessoas à intolerância. Estes corpos fora da (hetero)norma e da cisnormatividade já são resistência desde sempre. Com um governo fascista pela frente, temos que fortalecer ainda mais essa resistência e não tenho dúvidas de que é isso que irá acontecer. Na fase de elaboração do projecto, pensei que fazer a exposição do outro lado do oceano, num país com um pouco mais de liberdade, pudesse ser uma forma de denunciar a absurdidade que já previa acontecer no Brasil, mas já não sei se isso faz sentido depois de ver que em Portugal também assistimos a actos horrorosos de censura - basta pensarmos no caso da exposição do Robert Mapplethorpe em Serralves para entendermos que não há o livre-arbítrio que pensávamos existir. Imagino que, daqui para frente, quem estiver a produzir arte no Brasil terá de optar pelo discurso mais metafórico para driblar uma violenta tirania.

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