O médico benevolente, a cozinheira e as andorinhas

Em Tentúgal há uma quinta que pertenceu à Casa Cadaval durante séculos. Parte foi incendiada, depois reconstruída, para voltar a conhecer o declínio a partir de meados do século XX. Foi casa de nobres, terreno de cultivo e consultório dos mais necessitados. Hoje está devoluta.

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À secretária do estreito e atafulhado escritório do seu apartamento em Coimbra, o médico Armando Leal Gonsalves percorre a galeria de fotografias digitalizadas que conserva no computador. Nas imagens a preto e branco estão os avós, o pai, os primos, os companheiros de infância ou os amigos da família, desde o tempo em que ainda não era nascido até à sua juventude. O cardiologista, que aos 80 anos continua a dar consultas, apresenta a sucessão de fotografias no ecrã com o vagar necessário para detalhar onde foi tirada cada uma das fotografias e indicar que nomes correspondem a que caras.

As recordações da primeira metade do século XX que Armando Leal Gonsalves vai mostrando têm em comum o pano de fundo, a casa em Tentúgal onde passava fins-de-semana e férias, a meio caminho entre Montemor-o-Velho e Coimbra. À casa que terá sido construída no século XIV conhecem-lhe vários nomes: Paço dos Condes de Tentúgal, dos Duques do Cadaval, do Infante D. Pedro, Quinta do Paço ou, simplesmente, o Paço.

Apesar de ter pertencido durante séculos à Casa Cadaval, a família não morava lá. Apenas a visitava pontualmente, controlando a quinta através da nomeação de um administrador. É aqui que entra a família Gonsalves (cujo S foi sobrevivendo às mudanças de grafia), que dirigiu o Paço durante gerações. O último da linhagem foi Armando Gonsalves, de quem o neto herdou o nome e seguiu a profissão, que administrou o Paço desde o início do século XX até 1955, data da sua morte.

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O antigo administrador, Armando Gonsalves

Antes dele, o pai Francisco já tinha desempenhado igual função ao serviço da família Alvares Pereira de Melo (Duques do Cadaval), mas o filho, que também era médico pneumologista, deixaria uma marca mais duradoura, chegando até hoje nas bocas dos mais antigos de Tentúgal. Tanto que o seu nome baptizou uma alameda em Coimbra (não muito longe da rua onde ainda vive hoje o neto) e uma das principais ruas da vila de Tentúgal, onde há um busto em sua memória.

20 escudos pela Primavera

Um casal de andorinhas entrou na cozinha do Paço e construiu ali o seu ninho. O administrador Armando Gonsalves não quis desinstalar as aves e mandou colocar umas portas velhas por baixo, para proteger o asseio do resto da divisão. As andorinhas entravam, ninguém as incomodava e tinham ali a sua casa, que partilhavam com a cozinheira Teresa da Silva.

“Ó Teresa, cada ano, quando me disseres que as andorinhas chegaram, eu dou-te 20 escudos”, ter-lhe-á dito o administrador. Nos anos 1940, 20 escudos ainda era dinheiro. Manteve a palavra de tal forma que, chegando ao mês de Fevereiro, Teresa começava a olhar pela janela: “Quando é que vocês vêm, que o dinheiro dá-me tanto jeito”.

A história é assim contada por José Craveiro, o depositário de muito do património da quinta sem nunca ter sido seu dono nem nunca lá ter vivido. Nasceu numa aldeia das redondezas e mudou-se para Tentúgal em 1962, onde ainda mora. É contador de histórias. Para essa ocupação contribuiu a taberna dos pais, onde começou a trabalhar aos oito anos. Quando lhe perguntam sobre o Paço, José Craveiro vai desenrolando histórias que dão corpo à reputação do antigo administrador como figura generosa. Mas sublinha que ele não dava esmolas, embora por vezes procurasse as tarefas mais inócuas como pretexto distribuir uns escudos. José Cavaco, hoje com 78 anos, guarda na memória os vasos e o tom de voz com que Armando Gonsalves lhe perguntava quantos eram.

Neto da cozinheira Teresa da Silva, José Cavaco fez a quarta classe com 12 anos e foi trabalhar para o Paço, mas antes já lá brincava com o neto do administrador e também “fazia uns servicitos”, recorda. A troco de uns escudos regava os vasos da casa, que o administrador lhe garantia serem “tantos quantos dias tem um ano”.

Se durante a semana o médico exercia a profissão em Coimbra (foi director do Hospital dos Covões, de 1935 a 1949, onde teve como paciente o poeta António Aleixo), aos domingos, das 7h às 13h, dava consultas no Paço às pessoas com menos possibilidades, sendo muitas vezes recompensado com ovos, bolos e outros géneros, conta Armando Leal Gonsalves. “Mas não levava dinheiro de ninguém”, pelo contrário.

Já lá vão cerca de 15 anos, mas o neto ainda lembra o dia em que um marido e mulher lhe apareceram no consultório e lhe disseram ter sido tratados da tuberculose pelo avô. Como não tinham posses para ir a Coimbra, Armando Gonsalves (avô) ofereceu uma quantia que o casal disse ter dado para a radiografia, para a viagem, para almoçar e que ainda sobrou. “Ele dizia para irem à farmácia e porem o nome dele”, recorda. “Escrevia no verso da receita «sr. Farmacêutico, esta receita vai por conta de quem a passou»”, acrescenta José Craveiro.

Armando Gonsalves morreu em 1955, com menos três dedos devido à falta de protecção adequada durante as radiografias e sem fortuna. Deixou dívidas por saldar nas farmácias e o espólio que deixou esteve para ir a leilão, tendo acabado por ficar na posse da família.

Uma casa de nobres

A morte do responsável terá coincidido com a perda de fulgor da casa, que entraria em declínio e regressaria ao estado de ruína, pelo qual já passara noutras épocas.

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Para encontrar as origens do complexo instalado numa elevação a Sul de Tentúgal temos que recuar ao século XV, altura em a sua construção está associada ao infante D. Pedro, filho de d. João I. A vila de Tentúgal foi-lhe doada pelo rei, quando este já era duque de Coimbra e o infante terá “decidido erguer uns paços, que, para além de marcarem o seu senhorio sobre a vila, lhe permitiram folgar e apreciar os prazeres do campo”, escreve o professor catedrático de História da Arte, José Custódio Vieira da Silva.

Em Paços Medievais Portugueses (IPPAR, 1995), o historiador escreve também que apesar de o edifício conservar “elementos importantes da fundação quatrocentista”, o paço terá sido “muito adulterado por sucessivas reconstruções”. Uma dessas intervenções tornou-se necessária após 1834, ano em que as tropas liberais incendiaram a casa por conta do apoio do sexto duque do Cadaval, Nuno Caetano Álvares Pereira de Melo, à facção absolutista.

A capela tardo-gótica de S. Miguel nunca foi reconstruída, restando as altas paredes e o pórtico ogival. Durante o século XIX foram levadas a cargo obras na propriedade a cargo do administrador Francisco Gonsalves, que incluíram o palácio formado por vários corpos, caracterizado pelas três grandes chaminés e por aberturas ogivais. Ao lado havia uma grande eira onde era recolhido o dízimo das plantações, uma área hoje ocupada por um laranjal.

Quando Armando Leal Gonsalves mostra as fotografias do Paço ainda em actividade, é no celeiro e que se demora mais. Construído há mais de 500 anos, o telhado viria a desabar já na segunda metade do século XX. “Tinha arcadas muito certinhas. Agora isto é miserável”, desabafa.

“Notável é o celeiro (este só destinado ao milho), de oitenta metros de comprimento, do fim do século XVI. Compõe-se de três naves, divididas por duas séries de treze arcos, sobre colunas dóricas, na mesma disposição das igrejas regionais da época, mas de dobro do comprimento habitual nelas”. Este texto foi publicado em 1953, dois anos antes da morte do administrador e consta da entrada “Paço Ducal” do Inventário Artístico de Portugal – Distrito de Coimbra, escrito por Vergílio Correia e Nogueira Gonçalves.

Para dar uma noção de dimensão e organização que outrora se encontrava pelas terras do Paço, José Craveiro lembra os guardas da foice, uma espécie de força de segurança própria, que vigiavam os terrenos e as plantações.

Garagem do primeiro carro

Ao percorrer as fotografias, Armando Leal Gonsalves detém-se a explicar cada pormenor, desde a abertura que foi rasgada na parede para acolher o carro, aos vasos na escadaria que eram regados por José Cavaco.

Maria da Graça, hoje com 74 anos, recorda esse mesmo episódio dos vasos que o primo Zé regava quando lhe perguntam sobre as estórias do Paço. Com o passar dos anos não se afastou muito. Comprou por 20 contos um terreno ocupado por silvas e loureiros em frente à quinta, onde construiu a casa “sabe deus com que sacrifício”. Fala do Paço com entusiasmo e dos tempos em que trabalhavam lá “muitos homens e estava tudo limpinho. Era uma quinta que tinha tudo do melhor. Todas as ruas tinham os nomes em azulejos: Havia a rua do Mestre d’Avis, a rua do Beato Nuno, a adega era uma coisa linda… E o celeiro?” Já nada está como quando foi para lá viver, com quatro anos, só tendo saído quando o filho nasceu, em 1971. Agora “é uma pena e uma tristeza”.

Convida-nos a entrar mais para ver as fotografias que ainda guarda. Antes de retirar uma gaveta do armário da sala onde mantém as imagens de uma vida, Maria da Graça aponta para a parede, onde está pregada uma fotografia tirada em frente à capela do Paço. Nela figura um carro com seis homens e Maria aponta-os todos pelo nome, desde o marido a um administrador que sucedeu a Armando Gonsalves, passando pelo Chico do Beco e pelo Manel Brasileiro.

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Mas naquela fotografia o objecto também conta uma história. A quinta foi garagem do primeiro carro de Coimbra, um Darracq de 12 cavalos que, em 1902, entrou pela alfândega da Figueira da Foz como máquina agrícola, por ainda não haver registo para automóveis.

No ano seguinte, o Darracq com a matrícula “Coimbra-1” foi um dos protagonistas do primeiro acidente rodoviário da cidade, quando havia apenas registo de duas viaturas. Na zona do Largo de Sansão (hoje a pedonal Praça 8 de Maio), o carro de Armando Gonsalves choca com o Benz de Joaquim Refóios, também médico de ofício e lente na Universidade de Coimbra. O Darracq, que ficaria na posse da família Gonsalves até 1952 e que ainda pode ser visto hoje restaurado no Museu do Caramulo, ficou então com danos no valor de 15$80 e o Benz de Joaquim Refóios com estragos contabilizados em 37$60. A questão foi resolvida em tribunal a favor do administrador. 

Ruína de mão em mão

Depois da morte de Armando Gonsalves, as informações disponíveis sobre o Paço escasseiam. Entre as décadas de 1960 e 1990 a casa degradou-se até chegar ao ponto de ruína em que hoje se encontra; na vila há quem fale de administrações danosas mas as datas e as causas específicas não são ditas com força de certeza.

Da família Alvares Pereira, desde que foi para Tentúgal, José Craveiro não ouviu falar muito mais. Soube, pelo que lhe contaram os antigos, que a marquesa não visitava a propriedade com muita constância e apenas lhe conhece o nome porque a antiga senhoria da casa onde vive, tal como Olga Maria Nicolis di Robilant Álvares Pereira de Melo, a marquesa de Cadaval, tinha numerosos apelidos. Daí que o carteiro confundia os dois destinatários e lhe trocava as correspondências.

Armando Leal Gonsalves confirma a escassez das visitas e diz que só por uma vez viu a marquesa, algures durante a década de 1940. “Ela vinha muito poucas vezes. Ficava anos sem vir”, corrobora Maria da Graça que, tal como o neto do administrador, recorda a cerimónia em que os trabalhadores iam “dar-lhe aquela vénia e beijavam-lhe a mão”.

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Paulo Pimenta

Fonte do arquivo da Casa Cadaval (cuja herdeira é Teresa Schonbörn), informa que a família tem documentação relativa à casa de Tentúgal, bem como aos terrenos que a circundam. No entanto, essa informação não se encontra disponível. “Infelizmente, trata-se de um dos acervos que se encontra por tratar”.

O registo predial mostra que a propriedade ficou na posse da Casa Cadaval até ao final do século passado. Em 1991 foi vendida à PMZ, uma sociedade de construções com sede em Lisboa. A mesma fonte do arquivo refere que, a julgar pela forma como os bens da família eram geridos, “se a propriedade foi alienada, foi por uma questão de racionalidade da própria administração”.

Dez anos depois é adquirida por uma sociedade de investimento imobiliário, a AGII Atlântico, passando depois para uma outra sociedade do sector imobiliário, a Lisop. Em 2014, esta empresa é declarada insolvente, ficando a banca com os seus bens. Pelo meio desta troca de mãos, em 2013, é publicada em Diário da República a classificação do Paço de Tentúgal como monumento de interesse público, o que limita futuras intervenções que ali sejam feitas. “O estado é de degradação lenta”, sintetiza Leal Gonsalves. “Vai-se degradando ao ritmo do tempo, com muita pena minha”.

Hoje, a casa devoluta e os terrenos que se estendem por uma área superior a 121 mil metros quadrados são propriedade do Millennium BCP. Através do gabinete de comunicação, o banco refere que o imóvel faz parte da sua carteira e que a intenção é vender, mas que ainda não está a comercializar.

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