E se comermos peixe enquanto chove lá fora?

Há peixes de Inverno? Não, mas há espécies que surgem em maior quantidade e que estão particularmente boas nos meses mais frios do ano. Afinal, peixe não tem que ser sempre grelhado e à beira da praia.

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O sargo é um dos peixes que estão melhor no Inverno Enric Vives-Rubio
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Prato de Miguel Rocha Vieira na Fortaleza do Guincho dr

Sol, calor, praia, mar, peixe. Esta é a associação de ideias mais comum. Mas não tem que ser necessariamente assim. Se o Verão é o tempo de peixe grelhado, saladas, pés enfiados na areia, há peixes que estão no seu melhor no Inverno. É a altura em que estão mais gordos, mais saborosos e, geralmente, com ovas.

Isto quer dizer que há peixes de Inverno? A expressão não será a mais correcta, diz Pedro Bastos, da empresa de comercialização de peixe Nutrifresco, que fornece alguns dos melhores restaurantes do país e exporta para o estrangeiro. Engenheiro bioquímico de formação, Pedro é um apaixonado por peixes e não tem poupado esforços para os dar a conhecer, promover as espécies menos valorizadas e as melhores formas de pescar e tratar cada uma.

O que é que ele tem, então, a dizer sobre peixes no Inverno? “Há alturas do ano em que certas espécies estão mais disponíveis para serem capturadas e estão com uma condição física superior”, afirma. “Ou seja, não há peixes exclusivamente de Inverno, pelo contrário, costuma é haver peixes que se aproximam mais da costa com as correntes quentes de Verão, os chamados migratórios, como o lírio, o encharéu ou os tunídeos.”

Talvez o exemplo mais evidente destes peixes de Verão sejam as sardinhas — todos os portugueses sabem que é (pelo menos teoricamente) por altura dos Santos Populares que elas devem aparecer, se bem que estes peixes comecem a acumular gordura no final da Primavera e continuem a fazê-lo até Setembro ou Outubro.

E no tempo frio, que peixes estão em melhor forma ou mais disponíveis? Tudo tem a ver com a reprodução, explica Pedro Bastos. “Há correntes mais quentes na proximidade da costa e algumas espécies preferem-nas, aproximam-se por causa da temperatura da água e por necessidades ligadas à reprodução. A existência de um microclima ou a tipologia do fundo do mar determinam a escolha do sítio para libertar os juvenis. Isso acontece principalmente com o sargo, a dourada, o robalo, e mesmo o goraz, que, sendo um peixe de maior profundidade, por vezes vem para zonas mais próximas da costa.”

Quando começa a aproximar-se Dezembro e, sobretudo, a altura do Natal, o preço do goraz dispara, diz Pedro. Não porque o consumo aumente muito em Portugal, mas em Espanha é uma verdadeira loucura. “É um peixe muito apreciado pelos espanhóis, que lhe chamam besugo de pinta. É um dos pratos favoritos do Natal até ao Dia dos Reis, altura em que atinge valores exorbitantes, acima dos 50, 60 euros por quilo, podendo até chegar aos 80.”

Sendo um peixe mais de profundidade, encontra-se ao longo de toda a costa portuguesa, mas aparece sobretudo nas águas dos Açores. “Em Dezembro, só os tamanhos mais pequenos ficam em Portugal, de resto quase 90% do goraz capturado é vendido para Espanha.”

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Linguado à venda numa banca de peixe Adriano Miranda

Mas tirando casos como os da sardinha em Portugal ou do goraz em Espanha, tendemos a não dar grande importância às épocas dos peixes. E isso não acontece apenas nas nossas casas, mas também nos restaurantes. Só recentemente, diz o responsável da Nutrifresco, é que alguns chefs se mostram mais abertos a essa ideia e mais flexíveis quando chega a hora de comprar e o fornecedor lhes diz que naquele dia não há determinado peixe.

São, contudo, ainda muitos os restaurantes que, tendo um menu fixo (mesmo que decidido a cada estação), não o querem alterar — se têm robalo na carta, têm que apresentar robalo todos os dias. “Muitos chefs optam por um determinado peixe, afinam a receita perfeita e depois cristalizam aquilo e levam o ano inteiro a cozinhar o mesmo peixe”, constata Pedro. A alternativa — que é algo que os restaurantes tradicionais e mais populares sempre fizeram — é dizer que o que há é o “peixe do dia”. A vantagem é que será sempre o mais fresco.

Os peixes, resume, “estão sempre na melhor forma antes de desovarem”. É a altura em que estão mais gordos, com melhor textura e mais saborosos. Mas, lembra, como “o óptimo é inimigo do bom”, há um lado negativo nas capturas nesse período: se não se deixa o peixe desovar, a médio e longo prazo haverá menos peixe no mar. “O que é melhor do ponto de vista gastronómico não é necessariamente o melhor do ponto de vista da reprodução. Nós gostamos de um peixe gordo e ovado. Numa perspectiva ambiental, era melhor que o deixássemos ficar nas águas para desovar.”

Depois da desova, o peixe perde gordura e qualidade muito rapidamente e como “não é possível fazer uma selecção subaquática e saber qual é que ainda está gordo e qual já não está”, vem tudo à rede. Para quem pesca, a diferença é muito clara. “Até um determinado momento, a maior parte da população está a vir ovada, num espaço de dias ou semanas começa a desova, e o peixe vem num estado físico completamente diferente”, continua Pedro. “O animal deposita as suas reservas energéticas na ova, para ela ter autonomia e crescer. Quando ela é expelida, ele fica carente de energia.”

Por isso, sim, há épocas ideais para determinados peixes, assim como há zonas onde se encontram mais certas espécies. “A grande zona de desova do robalo é Peniche. A dourada vem desovar ao estuário do Sado, tem o seu grande epicentro em Sesimbra, Setúbal. Os linguados encontram-se um pouco por toda a costa, as capturas têm muito a ver com o tipo de ondulação, no Inverno, quando o mar é mais revolto, remexe os fundos e o linguado vem ao de cima.”

No caso do sargo, é preciso procurá-lo nas zonas mais rochosas, Sagres, Costa Vicentina, mas também Peniche, onde aparecem os sargos negros, de rocha. Mas existe igualmente um sargo mais branco, de areia, que tem a sua época entre Dezembro e Fevereiro. Também o espadarte, diz ainda Pedro, aparece mais entre Setembro e Fevereiro ou Março. “Não é um peixe tão costeiro, mas andam sempre de um lado para o outro e há alturas em que passam mais perto da costa.”

Talvez não seja preciso ter este calendário na porta do frigorífico, mas é bom saber que o que aparece na lota ou no mercado em cada estação é o peixe que se encontra melhor e mais saboroso. E que, mesmo quando não há sol, não temos os pés enfiados na areia, está frio e chove lá fora, há peixe que está no seu melhor.

 

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