Miguel, um longo mergulho na comida caseira

O Rei dos Galos de Amarante é uma "tasca de comida caseira” entalada na Rua das Taipas, coração do Porto. É um espaço que “acaba por ser único e acolhedor, apesar de ser velho e não muito bonito”.

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Nelson Garrido

Mede 1,89m, as suas mãos já foram as de um jogador de andebol e a tez do seu rosto revela uma marca oval quase perfeita gravada pelos raios de sol. É tão fácil traçar o retrato robot de Miguel como perceber o fascínio pelo mar e pela caça submarina que o levam a mergulhar durante quatro horas seguidas  (“às vezes são oito; levo uma prancha com comida”) e a suspender a respiração no fundo do mar durante um minuto e trinta segundos (“chego a fazer apneias de 1’49’’).

Conhecemos Miguel Pereira entre as pequenas divisões do Rei dos Galos de Amarante, restaurante que não serve cabidela. “As pessoas pedem-me arroz de frango. ‘Não quer antes um robalo?’”, costuma responder o cozinheiro, empregado de mesa e anfitrião desta “tasca de comida caseira” entalada na Rua das Taipas, coração do Porto, um espaço que “acaba por ser único e acolhedor, apesar de ser velho e não muito bonito”.

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Nelson Garrido

A antiga tabuleta Rei dos Galos de Amarante já é só para enganar. “O sogro do irmão do meu pai era o primeiro dono da tasca, anos 1950. Era de Amarante e vendia frangos no Palácio de Cristal, que era um mercado. O meu pai achou piada e manteve o nome.” Está explicado um dos mistérios da casa, que só faz o almoço de sexta-feira e as refeições do sábado (“nunca ficarei rico; dá para as despesas e para ter um estilo de vida saudável”), um sítio especial que serve clientes especiais que vão assimilando o seu manual de instruções. “Não tenho clientes normais. Quem lá vai já percebe como a coisa funciona. E não estou muito preocupado em não ter um restaurante convencional. Ali faz-se uma selecção natural das pessoas. As que não entendem isso, deixam de lá ir. E eu não me importo”, explica Miguel. “Quem lá vai”, sublinha, “é como uma família”. Sai da cozinha, mangas arregaçadas, e diz: “Tenho vitela para duas pessoas” ou “Tenho uma sobremesa, tenho esta sobremesa”. E nós aceitamos — ou não. “Num restaurante normal soava estranho. Ali não. As pessoas não levam a mal.”

Miguel faz comida “mais ou menos a pensar nas pessoas que vêm”. Clientes da casa. “Conheço 70% das pessoas. O conceito de restaurante familiar é levado ao extremo. Eu conheço o nome das pessoas que lá vão. Isso torna tudo mais fácil. Sei que X pessoa gosta mais de determinado prato. Normalmente não me sobra comida nenhuma. E tenho sempre comida fresca.” Um dia, os seus pais tiveram “uma ideia de marketing espectacular para fidelizar clientes” e a mãe bordou o nome de alguns nos guardanapos de pano. Clientes e guardanapos ainda hoje existem.

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Nos últimos anos, e com o ciclo dos seus pais na tasca perto do fim, Miguel percebeu que tinha talento para além das ilustrações científicas para manuais escolares. Pegou em algumas coisas de casa (“como muito bem em casa; a minha mulher cozinha muito bem”) e agarrou em algumas heranças da tasca, conseguindo “meia dúzia de pratos” que são uma referência até hoje: carnes que “estão quatro horas a assar (já estão às 8h30 no forno, ficam tenríssimas)”, peixe “quando é a altura dele”, sopa de peixe (“faço sempre duas panelas ao almoço e vai sempre toda”), feijoadas, pratos típicos e “boas sobremesas”. “Fazendo em casa, é fácil levar os pratos para um restaurante”, diz.

A receita aplica-se ao peixe e ao mar, que Miguel conhece tão bem como o equipamento que o acompanha nos mergulhos e nas longas apneias. Barbatanas muito compridas, um cinto de pesos, duas armas e uma câmara GoPro na peça de um dos arpões. E um fato que só lhe deixa a cara descoberta, exposta às radiações solares. “Tenho matéria prima em abundância em casa”, diz Miguel, que começou a pescar há 20 anos e cujas primeiras receitas de sopa de peixe tinha o peixe porco como base. “Com o tempo, comecei a apanhar peixes mais nobres, como robalo e sargo”, explica, enquanto unta o fato com vaselina para evitar barulhos debaixo de água, onde tem que ser uma espécie de ninja. “Tenho que ser bastante silencioso”, avisa Miguel, que hoje vai “pescar na espuma”, a umas dezenas de metros do areal da Póvoa de Varzim.

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“Quando o mar está bom estou sempre aqui, sempre”, admite. “Como é que eu hei-de dizer... é como recarregar energias. Consigo ir para o restaurante completamente rejuvenescido. É um vício tremendo.” Miguel tem “um carro velho para isso mesmo”. Mergulha duas horas num sítio, mete-se no carro de fato e tudo e vai espreitar outra praia. Desta vez, esperámos por ele quatro horas certinhas. Saiu do mar com a marca da cara mais vincada, a arrastar a bóia de sinalização e aquilo a que chamou de “caçada normal”: “sargos muito bons e robalos razoáveis”. “Falhei dois tiros. Fartei-me de perdoar peixe”, conta o caçador adepto da “pesca selectiva”, à volta de cem mergulhos no corpo, peixe a escorrer sangue à cinta. “Tenho a sorte de comer peixe bom todas as semanas e várias vezes por semana. Tenho sempre peixe em casa, que nos dias que correm é um luxo.”

A experiência no mar e o ritmo de peixe no forno de casa leva-os para a cozinha “super-simples” do Rei dos Galos de Amarante. “Vivemos da simplicidade”, diz como peixe na água. Os bróculos estão a escaldar numa panela. Há muito alho, alecrim, tomilho, louro e muitos coentros. Há batatas com casca espalmadas nas mãos grandes, carne a assar em câmara lenta e pilhas gigantes de sal que enterram o peixe. E há um relógio de cozinha quase tão importante como o relógio de pulso que no mar indica o tempo de recuperação à tona entre mergulhos.

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