Luísa, a menina do Caraças

A ementa do dia no restaurante da Rua das Taipas, no Porto, tem dois pratos. "E chega." Mas sempre feitos "com muito gosto".

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Nelson Garrido

Oito da manhã. A Rua das Taipas está bem acordada. O Caraças tem as portadas fechadas. Tocámos à campainha e fomos recebidos pela dona Luísa, que pode passar 16 horas por dia lá dentro (“é muita coisa”). Esperou que as duas cocker spaniel entrassem na porta ao lado e voltamos para o restaurante vazio onde, estava prometido, nos contaria a sua história ao ritmo do pequeno-almoço. “Quem me tira o pequeno-almoço...” Coisa simples — como tudo lá dentro. Uma caneca de café com leite e um pão, uma metade com manteiga, a outra com compota. “Pus aqui num lado um bocadinho de doce... de abóbora. Não devia, mas sou eu que a faço... É só de longe a longe”, justifica, deixando para a Fugas um pires a transbordar e a colher que serviu para o encher. “Já fiz 68 anos. Quando as pessoas como eu começarem a ir... os restaurantes de comida portuguesa também vão.”

A dona Luísa é assim. Simples. Diz o que lhe vai na alma. Fala com toda a gente. Passa uma vida na cozinha, que é mais alta do que ela (não dispensa o seu “banco de eleição”, um degrau que lhe ofereceram e que lhe facilita as tarefas), e aceita a “escravatura” com um sorriso porque adora o que faz, fala dos ingredientes com magia e, desligado o lume no fim das refeições, faz questão de conversar com os clientes um a um. Todos. “Gosto de saber se as pessoas ficam satisfeitas. Para mim é o mais importante. Os estrangeiros não me compreendem, mas chegam à cozinha e fazem com o dedo ‘fixe’, ‘delícia’. Ficam felizes. É o meu maior gosto. Adoro o que faço. Faço as coisas com muito gosto.”

A ementa do dia tem dois pratos. Carne e peixe. “E chega!” Muitas vezes bacalhau. “Ainda na semana passada me vieram trazer duas caixas, 60 quilos. Esse bacalhau abre como um livro, é daquele às lascas, gordo. Muito superior”, diz a dona Luísa, “muito exigente”. Escolhe tudo. Desde a lota ao mercado abastecedor. “O peixe olha para nós, olhos vivinhos. Gosto de coisas frescas.” Damos mais uma colherada no doce de abóbora, pedaços irregulares, casca fininha de laranja, paus de canela e vinho do Porto. “Num mês fiz 60 quilos, trinta de cada vez. Sirvo com requeijão de Seia. Até voa. Trago as abóboras porqueiras da aldeia. Tenho ali quatro enormes, que não posso com elas.”

Trás-os Montes, Valpaços. A aldeia de Luísa chama-se Curros. Lá aprendeu coisas que ainda hoje sabe: a cozer pão e bola, a fazer meias e camisolas (“a minha mãe tecia”). “Éramos uma família de lavradores. Sete irmãos, todos vivos.” Luísa veio da aldeia para o Porto com 20 anos. Estudou à noite e trabalhou na cantina dos engenheiros da União Eléctrica, ali na Batalha. “Havia uma cantina no Freixo dos trabalhadores. E ali era só dos vips. Aqueles fardos de bacalhau inglês enormes... Já tínhamos máquinas de triturar o lixo e tudo do mais moderno que havia. Foi há 48 anos.”

Só cozinhava “coisas de primeira”. Vivia em Costa Cabral. Durante um ano Luísa chorou todos os dias. “Não gostava de estar na cidade. Gostava de liberdade”, lembra. Chegou à cidade “com os olhos fechados”. Ia ao Bolhão “num pé e vinha no outro”. Aprendeu a escolher a carne, as frutas, as hortaliças. “Era um mercado espectacular. De madrugada era ver os camiões a descarregarem os produtos fresquinhos. Sabia todas as peças da carne. Ainda hoje sou muito exigente na carne.” Até hoje acha que usar “um arroz barato é desperdício, faz má obra”.

Diz-se “esquisita”. Não compra “nada cortado”. Não usa congelados. Tomou “o gosto pela cozinha” na União Eléctrica. Às vezes ia fazer banquetes. Adora descascar o marisco para os rissóis. E mistura as etapas da sua história — como as receitas. “As tripas, os folhos... quando faço aqui... a orelha fumada. E o leite-creme... os franceses adoram. Gosto de queimar na hora com as pás e a chama. Eles adoram aquilo, tiram fotos, que andam por todo o mundo. E faço a compota. No ano passado fiz mais de 200 quilos. Há dias esteve aqui uma senhora de Óbidos que me pediu pelo amor de Deus que lhe desse um bocadinho.”

Uma vez, chegou-se a um cliente da casa que comia de olhos fechados.
— Ó senhor doutor, então? A comida não está boa?
— Isto está delicioso, faz-me lembrar a comida da minha mãe.
“Tanta gente que diz isso. ‘Está bem. É sinal que estás a gostar.’ As pessoas aqui gostam.”

Da União saltou para uma cantina da Segurança Social no bairro São João de Deus. “Não havia fartura, mas era tudo fresco. A gente dava-lhe uma volta.” Os miúdos, “muito pobres”, adoravam-na. “As pessoas davam-nos os restos da agricultura para os animais. Eu chamava ‘a lavagem’. Davam-nos abóboras e eu fazia doce para os garotos. Fazia pudins. Ninguém me obrigava. Em vez de ser só pão com manteiga... Ainda hoje, se encontrar algum garoto, ele vem dar-me um abraço. ‘A menina da cantina’. Era uma felicidade.”

A sua carreira na restauração tem mais dois capítulos antes do Caraças. Primeiro tomou conta de uma casa de pasto. Era a Flor da Boavista, “ao pé dos telefones”. Começou a servir dez, quinze almoços por dia. Quando saiu servia cem. A cozinha era aberta, uma montra. “Na altura não se usava.” Dava muitos petiscos, muita punheta de bacalhau, muitas moelas, tripas e “coisas assim”. “Os homens punham-se na janela a ver o que eu estava a fazer. E bolinhos de bacalhau... aquilo era uma loucura. Uma vez zanguei-me com uma sócia — era a única sociedade de três mulheres no país. ‘Ah, lá estás tu a dar. Não estou a dar, estou a semear’. Quem não semeia, não colhe. As pessoas comiam aqueles bolinhos e depois comiam mais.”

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Depois lançou-se numa tasquinha, A Calçada, na Rua Barbosa de Castro, onde esteve 17 anos. “Chorei muito. Dei oito mil e quinhentos contos pelo passe e não fazia nada. Estava às vezes toda a manhã e toda a tarde e não fazia nada. Depois não tinha mãos a medir. A minha tasquinha trabalhava que era uma loucura. Muitos petiscos. Fazia umas pizzas que eram uma delícia, bola de carne, bola de bacalhau... Trabalhava que nem uma tola. Mas gostava.”

Os clientes vão atrás dela. “Ah pois é, sou levada do diabo”, diz a menina da cantina. Migraram para O Caraças, onde trabalha com as filhas gémeas Paula e Mónica. “Quando comprei este prédio as pessoas diziam-me ‘mulher, onde é que tu te foste meter?’ Era medonho, este sítio.” Já lhe ofereceram uma fortuna. “Não, não vou. Se os outros gostam de morar aqui, eu também gosto.”

A dona Luísa pontua a conversa com “carne saborosa”, “sal e uns pingos de azeite”. Faz pausas acertadas para passar a receita da pescada gratinada e dos “paralelos” (“o meu chão era empedrado como na rua”). Insiste no forno de lenha e nos “produtos da terra” (“Trago da aldeia tomates, figos secos e muita castanha. Lá ninguém vai comprar nada. O que não se come, fica na terra. Nunca levei aqui um tostão por castanhas. Ficam cinco estrelas”). “Qualquer dia tenho que deixar isto.”

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Nelson Garrido
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