Já sabemos para que serve uma biblioteca em Marvila

À beira do segundo aniversário, a biblioteca de Marvila já não é olhada com desconfiança e tem-se tornado um pólo de atracção crescente. A meio caminho entre uma zona em rápida transformação e os bairros ainda estigmatizados, tem agora um desafio: criar pontes.

Foto
A Biblioteca de Marvila está instalada num edifício desenhado para o efeito pelo arquitecto Raul Hestnes Ferreira Fabio Augusto

Talvez seja a frase de Paulo José Silva, coordenador da Biblioteca de Marvila, a que melhor resume os dois anos de vida deste equipamento cultural: “Também temos livros.” Frase estranha se do que se fala é de uma biblioteca, não tão intrigante se dissermos que ela está perto dos bairros aos quais o resto da cidade se habituou a virar as costas. Consciente de que, ali, existe uma “população com dificuldade de acesso à cultura”, Paulo e a restante equipa concentraram-se numa máxima: “Se eles não vão lá, vamos nós trazer cá.”

“Não nos esquecemos de que estamos numa biblioteca, e de que a leitura é muito importante, mas ela pode ser feita de muitas maneiras”, continua o coordenador. A Biblioteca de Marvila, que comemora o segundo aniversário no fim do mês, foi a primeira construída de raiz já de acordo com o Programa Estratégico Biblioteca XXI, e portanto “não é só um espaço de acesso aos livros e à cultura, mas também de acesso ao conhecimento, da comunidade e de empreendedorismo”, diz a vereadora da Cultura, Catarina Vaz Pinto.

“Para que serve uma biblioteca em Marvila?”, perguntavam os moradores em 2016, porque o que preferiam ver ali era uma esquadra da PSP. “No fundo, o que fazemos aqui é trabalhar competências e empoderar a comunidade”, explica agora a vereadora. “A nossa função não é tirar as pessoas da pobreza. É criar públicos que possam fruir de programação artística”, diz Paulo Silva.

Situada a meia dúzia de passos da linha ferroviária de cintura que divide Marvila ao meio – não apenas geograficamente, mas socialmente –, a biblioteca tem funcionado como o pólo cultural que esta zona não tinha e, provavelmente, nunca sonhou ter. Ainda recentemente decorreu a segunda edição de Os Dias de Marvila, programa que trouxe exposições, visitas guiadas, peças de teatro, debates, workshops e concertos. Uma forma de chamar a restante Lisboa aqui e, aos de cá, de “trazer o orgulho de ser de Marvila”, explica o responsável.

Mas o trabalho desdobra-se ao longo do ano numa constelação de iniciativas de maior ou menor dimensão, que não estão necessariamente relacionadas com os livros. Neste momento, uma das coisas que mais entusiasma Paulo José Silva é o trabalho à volta dos videojogos, “um leitmotiv para uma série de aprendizagens” e um pretexto para pôr em contacto a parte norte da freguesia, ainda alvo de algum estigma, e a parte sul, que se está a transformar rapidamente por via da chegada de muitos estrangeiros e da instalação de novas empresas ligadas à tecnologia.

O coordenador da biblioteca, que até há dois anos trabalhava na câmara de Loures e foi “surpreendido” para dirigir este equipamento (quando não tinha qualquer experiência em tal), diz-se preocupado com a mudança de tecido social na zona ribeirinha de Marvila – onde, por exemplo, as famílias de um quarteirão inteiro podem ser forçadas a deixar as suas casas. “O nosso papel aqui é de reflectir e de pôr as pessoas a reflectir”, diz Paulo, brincando: “Usamos Junho, no mês das festas da cidade, para reflecti-la de outra forma.” Refere-se ao Urban Audiovisual Festival, que este ano mostrou, entre outros, o documentário Terramotourism, muito crítico da transformação lisboeta dos últimos anos. “Quanto mais as pessoas daqui forem comunidade, mais a sua expulsão é dificultada. Infelizmente, este processo de gentrificação vai ser mais rápido do que eu previa”, lamenta.

Biblioteca em Alcântara em 2019

Catarina Vaz Pinto, que esta sexta-feira vai inaugurar um novo espaço na Biblioteca da Penha de França, explica que “a ideia de ancorar em Marvila esta biblioteca foi anterior a tudo isso” e que, agora, há que pôr estes dois mundos desavindos a comunicar. “A cidade é feita de múltiplos agentes e nós somos os facilitadores”, diz a vereadora da Cultura, anunciando para breve “um mini-cluster cultural” perto da biblioteca, com a cedência de rés-do-chão comerciais a algumas associações culturais e empresas, de forma a incentivar a criação de “uma cidade coesa e de inclusão”.

Lançado em 2012, o Programa Estratégico Biblioteca XXI tem a ambição de criar em Lisboa uma rede de oito grandes bibliotecas e 18 mais pequenas até 2024. Os trabalhos tiveram vários atrasos significativos – a requalificação da Biblioteca do Palácio Galveias e a própria construção de Marvila – mas a chefe de Divisão da Rede de Bibliotecas, Susana Silvestre, garante que “está tudo em dia” no programa.

Esta é a primeira biblioteca construída de raiz segundo os princípios do Programa Estratégico Biblioteca XXI Fábio Augusto
A Biblioteca de Marvila foi a última obra pública do arquitecto Raúl Hestnes Ferreira Fábio Augusto
"Também temos livros", diz o coordenador da biblioteca Fábio Augusto
A biblioteca está ligada internamente a um edifício antigo, a Quinta das Fontes Fábio Augusto
Na Quinta das Fontes está parte do acervo do escritor José Gomes Ferreira Fábio Augusto
O auditório tem sido polivalente: tanto recebe reuniões de moradores como espectáculos de artistas emergentes Fábio Augusto
Existem duas salas de leitura no espaço, que no total tem cerca de 2600 metros quadrados Fábio Augusto
O edifício novo manteve um antigo lagar de azeite existente no local Fábio Augusto
Fotogaleria
Esta é a primeira biblioteca construída de raiz segundo os princípios do Programa Estratégico Biblioteca XXI Fábio Augusto

Catarina Vaz Pinto adianta que a Biblioteca de Alcântara abrirá ao público “no último trimestre de 2019” e explica que “nos próximos anos, mais do que reabilitar e construir novo, a aposta é densificar a oferta”. Ou seja, ter mais conferências, exposições e cursos. As prometidas novas bibliotecas para Benfica e Alta de Lisboa têm ainda de esperar para serem mais do que um desejo.

Quanto a Marvila, ao mesmo tempo que abre as suas portas às “novas tecnologias”, ao “património cultural”, à “ciência” e à “arte emergente”, os quatro pilares de trabalho segundo Paulo José Silva, procura não excluir uma parte importante da população: “Há muita gente que mora aqui à volta que não sabe ler nem escrever”. O coordenador da biblioteca está a ponderar lançar cursos de alfabetização. A vereadora, congratulando-se com o que já foi conseguido, remata: “Ainda só estamos no segundo ano. Este é um trabalho lento.”

Sugerir correcção
Comentar