Por que é que não posso abrir uma conta no banco central?

Uma década volvida sobre a falência do Lehman Brothers, o sistema financeiro, vigiado pelos bancos centrais, está hoje mais regulado. Porém, o debate público tem ignorado uma questão de fundo – afinal, como é que o dinheiro nos chega às mãos? A resposta, hoje ou em 2008, é a mesma.

Instintivamente, o leitor poderá pensar no banco central. À nossa escala, o Banco de Portugal tem uma fábrica no Carregado, onde se imprime (parte) das notas e moedas que utilizamos (assim como outros países). É a partir daí que são abastecidos, diariamente, os multibancos de todo o país.

Mas isto é só uma parte da história. Na realidade, a maior parte da moeda é produzida por bancos “convencionais” e não pelo Banco de Portugal (ou o BCE). De facto, por cada euro que depositamos no banco, apenas sete a dez cêntimos são produzidos pelo BCE: falo das reservas – as contas que, obrigatoriamente, cada banco comercial detém no banco central, garantindo que uma fração do meu dinheiro não é emprestada. De facto, os outros 90 cêntimos serão emprestados a uma empresa para investir ou a uma família em busca de casa. E eis que, subitamente, parte do meu euro (que o extrato bancário diz estar na conta) é utilizado por alguém – o meu banco criou dinheiro.

Proponho olhar com mais atenção àqueles dez cêntimos (por euro depositado) que compõem a conta do meu banco no BCE. Porque é que ela existe? Em essência, para os bancos acertarem contas entre si: salários, compras e transferências movimentam o nosso dinheiro por vários bancos. Chegados ao fim do dia, cada qual apura quanto dinheiro tem a haver ou a receber de outros bancos – e usa a sua conta no banco central para tal.

Então, e se o dinheiro não chega? Com apenas 10% do dinheiro existente nestas contas, é natural que haja dias em que os bancos precisam de dinheiro para financiar os seus compromissos. Aí, chama-se o banco central que, conhecendo as necessidades de liquidez, responde com dinheiro recém-criado (a oferta). Qual o preço do dinheiro? A taxa de juro, determinada pelo banco central – um dos instrumentos da política monetária.

Esta arquitetura introduz um importante desfasamento entre bancos e cidadãos: por lei, apenas os primeiros podem abrir contas no banco central e transacionar diretamente entre si. Empresas e indivíduos têm de correr as suas transações via bancos ou em numerário. Porém, a crise deu uma nova dimensão a esta iniquidade.

Embora com diferentes timings, a Reserva Federal, nos EUA, ou o BCE, na Europa, seguiram estratégias semelhantes contra a recessão: emprestar aos bancos tanto quanto necessário e fazê-lo a taxas cada vez mais baixas – senão mesmo negativas – e por maiores períodos. Porém, num mundo ainda em choque com o cataclismo do Lehman, apesar de dinheiro não faltar, à natural contração na procura de crédito juntou-se outro fenómeno: os bancos preferiam a certeza de manter somas nas contas eletrónicas junto do banco central em vez de o emprestarem. Para além de comprometer a política do banco central, esta realidade mostrou que, fim do dia, não há depósito mais seguro do que aquele junto da instituição que dá valor à própria moeda.

Ao permitir que o comum cidadão abra uma conta no banco central, estaríamos, portanto, a conceder-lhe acesso aos depósitos mais seguros da economia – replicando, possivelmente de forma mais eficaz, a densa regulação que tem visado tornar os nossos depósitos mais seguros e abrindo um novo canal (mais direto) para a política monetária. Neste cenário, o próprio banco central definiria a taxa de juro sobre estes depósitos e emprestaria aos bancos comerciais (tal como hoje) à mesma taxa.

Mas não está, assim, o banco central a concorrer com os outros bancos? Não, porque ambos têm papéis diferentes: enquanto intermediário financeiro, o banco comercial procura lucrar da diferença entre as baixas taxas de juro a que se financia diariamente e as taxas, mais elevadas, a que nos financia (para comprar um carro ou uma casa), a vários meses ou anos. O banco central, por sua vez, é mandatado para a estabilidade financeira e ofereceria apenas os “serviços mínimos bancários”, com juro e risco mínimos. Como tal, abrir uma conta no banco central implicaria abdicar da taxa de juro mais vantajosa praticada pelos outros bancos, em prol de segurança. Cada um repartiria o seu dinheiro de acordo com o seu perfil de risco.

Qual o papel dos bancos comerciais neste sistema? Para além de gerarem maiores retornos para os seus clientes, diferenciar-se-iam de um banco central meramente eletrónico através de serviços de apoio ao cliente, balcões ou outras comodidades a que estamos habituados. Estes continuariam a ser a principal fonte de crédito à economia, com o banco central largamente fora deste domínio. Porém, com a previsível fuga de depositantes, haverá menos folga para emprestar.

Conceder crédito aos volumes atuais seria, portanto, mais difícil – algo potencialmente prejudicial para a economia –, para além de acentuar restrições existentes no acesso ao crédito (aqui, sim, a regulação pode intervir). Porém, com menos dinheiro para emprestar, espera-se dos bancos mais consciência e parcimónia, diminuindo a probabilidade de bolhas – um substituto (pelo menos parcial) da densa regulação que a última década trouxe.

A opção de abrir uma conta no banco central permite uma política monetária mais eficaz, um depósito seguro e um melhor equilíbrio do risco na economia. Mas vai além disso: torna os bancos mais responsáveis por si próprios. Com os depósitos mais seguros da economia no banco central, não resgatar um banco em apuros torna-se económica e politicamente mais viável. Foi a má memória do Lehman, não resgatado, que guiou as intervenções de governos europeus em múltiplos bancos (também em Portugal). Novos organismos e regulações fazem-nos crer que, a ser hoje, a história seria diferente. Mas quão diferente? Erros passados foram corrigidos, mas os fundamentos do sistema permanecem os mesmos. Talvez possamos fazer melhor.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

Conteúdos relacionados: Ball, Laurence M. (2018). The Fed and Lehman Brothers – Setting the Record Straight on a Financial Disaster. Reino Unido: Cambridge University Press

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