Os eleitores não comem palha

Os populismos, as derivas autoritárias e securitárias têm de ser compreendidas e não tratadas com uma certa sobranceria intelectual

É um dado adquirido que as sociedades democráticas de matriz ocidental, tal como as conhecemos, estão em rápida mudança e, provavelmente, não serão mais as mesmas. Os partidos tradicionais saídos do pós-II Guerra sofrem a erosão natural dos tempos e da caducidade das suas mensagens. Na Europa, após a necessidade de reerguer o continente da devastação de um dos mais sangrentos conflitos de sempre, entendeu-se que “no meio estava a virtude”.

Construiu-se a ideia do “centro” que, sociologicamente, sempre existiu. Aliás, creio bem que esse é o espaço natural da maioria dos cidadãos que se não revêem em extremismos. Mais à direita ou à esquerda, o welfare state foi florescendo com o desenvolvimento económico. Uma boa economia ajuda em quase tudo a sermos mais abertos à diferença, à aceitação de emigrantes, à urgência, até, de refrescar gerações envelhecidas como em Portugal. Mas quando o motor gripa ou falha, a natureza humana revela-se. E ela é típica de um mundo animal do qual muito nos queremos distar, mas ao qual pertencemos. “Primeiro nós, aqueles que vivem aqui, nesta terra, e depois eles”. É um instinto de defesa primário que, em si, tem de ser respeitado e compreendido.

O problema actual contende, de entre outros aspectos, com a negação disto mesmo e partir-se de um princípio muito bonito nos discursos, mas absolutamente inoperante. Mais do que isso, perigoso. Negar a natureza nunca deu bons resultados. Os diques acabam por ceder à pressão das águas. Donde, os populismos, as derivas autoritárias e securitárias têm de ser compreendidas e não tratadas com uma certa sobranceria intelectual que diz que quem se não mantém fiel aos valores ainda herdados do Iluminismo é uma animália.

Podem escrever-se tratados a repetir isto mesmo, mas as ditas animálias são cidadãos como os pseudo-intelectuais e têm direito, em democracia, ao mesmo número de votos. E está já visto que não é pelo currículo académico-científico ou por uma influência de opinion makers — mais suposta que real — que as pessoas concretas mudam o seu sentido de voto. E, em dado sentido, ainda bem. Afinal não estão eles a pensar pela sua própria cabeça, tal qual os “intelectuais” que se reclamam filhos desse deus maior que os ungiu com a capacidade de pensarem “contra a corrente”?

Vem isto a propósito de uma dose enorme de pragmatismo de que necessita a vida pública global. Não gosto nada de Trump, por exemplo, mas tenho de perceber o que cativa o eleitorado americano, ao ponto de a derrota nas midterm elections não ter sido estrondosa. Ao ponto de mudar o Procurador-Geral por outro que lhe é mais favorável quanto à suposta influência russa nas últimas presidenciais. O discurso da ordem e do trabalho para todos os nacionais é, afinal, a reacção de pessoas assustadas perante um mundo em mutação. O que se exige aos partidos que desejam manter o Estado de Direito e os valores da solidariedade não é que desconsiderem estes concidadãos, mas que encontrem maneiras de conciliar estas legítimas preocupações com o ideário que esteve na base do Tratado de Paris de 1951 e do de Roma de 1957. E aí a dificuldade tem sido gritante.

O caso Silvano 
Pragmatismo este que, agora ao nível da política caseira, se não compadece com o que foi noticiado sobre o deputado José Silvano. Muito menos com a caracterização dos factos como “questiúncula” por Rui Rio. Não era ele o campeão da transparência e da dignidade no exercício de funções? Se um deputado afirma estar presente em plenário quando tal não corresponde à verdade ou — cereja no topo do bolo — assina a presença na Comissão de Transparência e depois vai-se embora (e isto é factual: vimo-lo nas televisões), então, estamos conversados. 

Ou Silvano é um humorista incompreendido e fez a rábula do século ao cometer uma fraude na Comissão de Transparência, num maravilhoso trocadilho, ou mantém a perspectiva de vários políticos de que está acima da Lei. Ora, são comportamentos como este que matam os partidos tradicionais que, nas últimas décadas, tinham provado bem num certo equilíbrio tendente para o centro, afastando tentações extremistas. É evidente que o cidadão comum também gostava de ficar em casa e que se arranjasse uma artimanha qualquer para picar ou lhe picarem o ponto. Logo vem todo o chorrilho de insultos e lamentos sobre a classe política, que até pinta as unhas no plenário. E quem pode condenar estes nossos concidadãos?

“Quem não quer ser lobo, não lhe vista a pele”. Tique antidemocrático é também Rio responder em Alemão a jornalistas portugueses, quando interrogado sobre o tema. Como quem diz: estou-me a marimbar para o que vocês estão a querer saber e até mostro os meus dotes de quem frequentou o Colégio Alemão. Escolheu mal a língua, pois não consta que os germânicos sejam meigos com casos deste tipo. Lembram-se do Ministro que, por plágio, foi demitido, quando era o delfim de Merkel?

O grave disto tudo é que os perigos de que nos queixamos são alimentados por “episódios” deste jaez, provavelmente com relevância criminal (falsificação de documentos praticada por funcionário — art. 257.º do Código Penal — e, eventualmente, abuso de poder (“violar os deveres inerentes às suas funções, com a intenção de obter, para si (…) um benefício ilegítimo” — art. 26.º, n.º 1 da Lei n.º 34/87, de 16/7: crimes de responsabilidade de titulares de cargos políticos) e, por certo, disciplinar, para além de civil.

O copo da paciência dos cidadãos vai-se enchendo até que transborda e, se é certo que, até à data, Portugal tem sido um porto seguro em termos de populismos e radicalismos, lembremo-nos que o nosso povo é feito do mesmo ADN que os demais. E que está até à ponta dos cabelos com aqueles que julgam que os seus concidadãos comem tudo, inclusive palha.

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