A cultura pegada de cernelha é arte

Uma política cultural só faz sentido como oposição prática, em todas as suas formas — em todas as esferas da relação do Estado com a cidade — ao crescimento de seja qual for o totalitarismo em marcha.

As questões da cultura andam aí — uma tourada — e conferem protagonismo. São tema atraente sem nunca ter sido um programa, uma política, desde 74. Já se disse que é tudo e por isso não é nada. Um vazio se cria pela multiplicidade ilimitada de fenómenos que acolhe. De facto não se lhe define um objecto mas objectos, num infindável mapa de territórios que se sobrepõem, cruzam e articulam. Pode ser ritual primitivo, como way off life, a definição mais abrangente. No pós guerra — e não é data morta — era claro: a cultura respondia à barbárie imposta pelo nazi-fascismo, era um antifascismo prático, manifesto. Não esqueçamos o significado disso com tantos dignitários nazis a sobreviver no regime que se edificava dos escombros. A questão cultural estava subsumida na ideológica e de modo acertado. A nós neste cantinho, de nada nos serviu, como à Espanha também não. Agora que os chamados populismos estão a tomar conta de tudo o que virá? A nova barbárie — e o que será uma barbárie de novo tipo? — terá consequências semelhantes. Uma psicologia de massas de novos autoritarismos está aí, alimentada pelas falas imagéticas e miméticas, mimetizantes, do ecrã de computador, basta pensar na questão dos migrantes, na paranóia securitária, no consumismo “crente”, na psicologia do status vertida em todos os objectos-sinal que o identifiquem, na ideologia web-summitiana da deificação tecnológica que planta mundos novos de estaca em cima de mundos velhos, etc., um caldo cultural explosivo envolto ainda na mesma ideia famigerada de progresso ilimitado, forma suicida de praticar o desenvolvimento com a predação ilimitada dos recuros naturais. É quando se reunem extremos no mesmo cadinho ideológico de consumo geral, como coisa natural, sem percepção do que os antagoniza, que o vírus do mau veneno prova estar instalado — a tortura e o chopezinho de braço dado.

E como se combate? Com uma política cultural que tenha na sua raíz outra política, uma política artística — a primeira, dirigida à cidade, a segunda aos artistas e estruturas de criação, museus, orquestras, centros de escrita, editoras, colectivos arísticos e ao que é patrimonial e que o tempo seleccionou como memória propulsora qualificada — do que se faz actualmente e é êxito do dia, pouco ficará — a missão dos jornais é diária, se bem que seja muito mais que isso.

E como dar forma a um projecto desses? Tomando todo aquele conjunto de decisões que influenciam a formação das mentes de um modo que lhes permita crescer num regime em que possam, qualificadamene e não acarneiradamente, auto-formar-se, o contrário de serem formatadas. Que essa política realize na democracia o que na democracia impeça o crescimento da ideia populista, os bolsonarismos, que a destruiriam. E que aí está. Uma política cultural só faz sentido como oposição prática, em todas as suas formas — em todas as esferas da relação do Estado com a cidade — ao crescimento de seja qual for o totalitarismo em marcha.

Se é uma política para as artes? Não, é uma política para o cidadão, para o fruidor, para o experimentador — cada cidadão um laboratório, um pensador potencial de acordo com a sua persona-lidade. A política das artes é antes desta e pode, em parte, determinar esta, é outra coisa — ela anima da criação o que a política cultural é como divulgação.

Uma política para as artes - inexistente, o que se faz é correr atrás de buracos, casos e acasos — terá de se assumir como problemática, realmente inscrita no debate da governação, o reconhecimento real de que um país nada é sem museus vivos — mas não é animados de umas animações engraçadas que preenchem o tempo com diversas formas de deslumbre pacóvio —, sem cinema  — uns quantos filmes apenas, mesmo que bons — e cinemas, teatro e teatros de arte, cultura de espectáculos ao vivo, presencial, assembleiística, património vivificado, literaturas, editoras, políticas do livro, edição de clássicos, ensino e prática do melhor da língua  — porque existe, de Fernão Lopes e Vicente, a Pessoa e Carlos Oliveira, por exemplo — nas escolas, etc. Um programa determinado pelas razões criativas e assente na estruturação no país das condições logísticas complexas, disciplinares, dos seus exercícios múltiplos e diversos — pois, esta é a visão de um país europeu que a Europa está  a deixar de ser — sejamos vanguarda, pois, já que partimos de uma trágica rectaguarda, a tal da cauda da Europa.

E pensamos em actividades tão complexas como o teatro e a ópera ao mesmo tempo que em actividades tão elementares como a leitura dos clássicos na sala de aula, com tempo pleno do seu fruir e conhecimento fundo e não a correr entre duas rapidezes adrenalínicas.

Nada disto serve o mercado. Directamente não, é exactamente despesa e é democracia, democracia versus mercado, regulação do mercado se não lhe quiserem chamar outra coisa mais antagónica.

A prazo tudo tem a ver com a democracia, ao contrário da concorrência selvagem e do primado da competição obcecada, da ideologia do sucesso. Essa exclui todos os mal-sucedidos, a maioria mais ampla e cria uma sociedade dependente do mais vulgar porno-star-sistema, confunde o real com o reality show, torna ministros “estrelas” porno. Esse esquema vive bem com qualquer fascismo, seja ele mais mediatizado e virtual nas suas manifestações de controlo e hiperconsumo?, seja ele mais realizado na rua e violentamente selvagem.

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