O pogrom da chamada “Noite de Cristal”, 9 e 10 de Novembro de 1938

Há 80 anos, o pogrom de Novembro de 1938 acelerou a chegada de uma nova etapa na política anti-semita nazi.

Há 80 anos, na noite de 9 para 10 de Novembro de 1938, teve lugar em diversas cidades da Alemanha e da Áustria um enorme pogrom contra os judeus, incentivado por uma parte dos dirigentes nazis. Esse terrível acontecimento representou um ponto de viragem na política anti-semita nazi, que passou das discriminações e da definição dos judeus à “emigração”/expulsão dos territórios do Reich, bem como o sequestro e “arianização” da sua propriedade. Já existente na Europa, a vaga de refugiados judeus saídos dos territórios da Alemanha nazi aumentou de forma avassaladora.

É hoje em geral aceite entre os historiadores o facto de o caminho para o Holocausto – ou a Shoah – ter procedido por etapas cada vez mais radicalizadas, sem caminho de recuo. A política anti-semita teve, assim, um carácter cumulativo, progredindo desde a discriminação profissional até ao extermínio dos judeus europeus. Nos anos 60 do século XX, o historiador Raul Hilberg enumerou essas diversas etapas, referindo que, após as primeiras discriminações, a definição dos judeus e a sua expropriação, ocorreriam a deportação, a concentração em guetos e o extermínio.

Ao colocar o anti-semitismo no centro da sua ideologia e prática, o regime hitleriano apelou ao boicote ao comércio judaico, em 1 de Abril de 1933, prosseguindo com a exclusão dos judeus das profissões liberais e da função pública. Em 1935, as Leis de Nuremberga atribuíram um estatuto de cidadania e de “sangue” diferente aos judeus. A partir de 1938, a política anti-semita nazi consistiu na expulsão da função pública, na espoliação/arianização dos bens e na emigração forçada dos judeus dos territórios alemães. Esse ano de 1938 foi particularmente doloroso para os judeus alemães, austríacos, polacos, checos e italianos.

Com o chamado Anschluss (“integração” ou “reunificação”, para os nazis, “anexação”, para outros) da Áustria no Terceiro Reich, em 12 de Março de 1938, 190.000 judeus austríacos passaram a estar sob o domínio alemão e, até Setembro de 1938, cerca de 50.000 “emigraram”. Em 16 de Abril, Göring emitiu um decreto obrigando os judeus a registarem os seus bens e anunciou o objectivo de expulsar todos os judeus da vida económica. A procura de países de refúgio na Europa e noutros continentes levou o Presidente norte-americano Roosevelt a convocar a conferência de Évian, cidade termal francesa, realizada entre 6 e 15 de Julho, para “gerir” a “inundação” de judeus.

Com a presença de países europeus e da América Latina, a conferência foi reveladora de que aqueles iriam enveredar por uma política restritiva de entrada de refugiados judeus, e ter-se-á tornado então claro também para Hitler que ninguém iria “mexer uma palha” para recebê-los. Portugal, no seu isolacionismo, não participou em Évian, mas Salazar, não por acaso também ministro dos Negócios Estrangeiros, informou-se sobre a introdução dessa legislação restritiva, junto das suas representações diplomáticas. De Oslo veio a informação da introdução de vistos para a entrada na Noruega, excepto para os escandinavos. Também na Suécia, os alemães e austríacos “de religião judaica” ou que não pudessem regressar aos “seus países por motivos políticos ou em virtude das leis de raça” só poderiam entrar com visto.

Inspirando-se nessas leis, o Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) português estipulou, através da circular n.º 10, de 28 de Outubro de 1938, que os “emigrantes judeus” passavam a necessitar de vistos “de turismo” com a validade de 30 dias, para entrar em Portugal. Essa ordem abrangia pela primeira vez um vasto grupo específico de candidatos à entrada no país que se tornara visível a partir do momento em que a Alemanha começara a carimbar com a letra “J” os passaportes dos judeus, passando assim a especificar quais eram os “emigrantes”, impossibilitados de regressar ao país de origem.

Mas o ano de 1938 continuou a ser trágico em termos de acontecimentos que dificultaram a vida aos refugiados. Na conferência de Munique, realizada em 29 de Setembro de 1938, na qual a França e a Grã-Bretanha, através dos appeasers Daladier e Chamberlain, cederam a Hitler e a Mussolini, foi dada luz verde aos projectos expansionistas do governo nazi na zona dos Sudetas, na Checoslováquia. Por seu lado, o governo polaco estipulou que os compatriotas judeus a viverem no estrangeiro havia mais de cinco anos tinham de renovar o seu passaporte para entrarem no país; caso contrário perdiam a nacionalidade.

Encarando este diploma polaco como uma tentativa para retirar ao Terceiro Reich e à Áustria possibilidade de reenviar para a Polónia os cerca de 50.000 judeus polacos residentes em território alemão, a Gestapo ordenou a prisão de 17.000 daqueles. Conduzidos à fronteira germano-polaca, foram expulsos, mas a Polónia aceitou apenas cerca de 10.000. Foi então que um jovem judeu polaco, de uma família judia-polaca expulsa da Alemanha nessas condições, Herzel Grynzspan, feriu mortalmente a tiro um diplomata alemão, da Embaixada em Paris, Ernst von Rath, que acabou por morrer.

Na sequência deste atentado, uma onda anti-semita varreu a Alemanha. Numa procura de ganhar influência junto de Hitler, que permaneceu numa sombra de concordância, o ministro da Propaganda Joseph Goebbels aproveitou para incitar a SS e os membros do partido nazi a atacarem os judeus no espaço público. De 9 para 10 de Novembro de 1938, na “Noite de Cristal”, nomenclatura dada pelos próprios nazis devido aos vidros partidos das 7500 lojas judaicas, destruídas em todo o Reich, foram ainda destruídas 267 sinagogas e incendiadas outras 1919, queimados 11 centros comunitários, bem como atacadas 171 casas e 20 grandes armazéns de judeus.

Os actos de violência prolongaram-se por vários dias, percorrendo todo o país, perante o silêncio da maioria da população e até das próprias Igrejas que se abstiveram de criticar publicamente os ataques. Cerca de 91 judeus foram assassinados, centenas suicidaram-se e 800 morreram em campos de concentração, onde foram encarcerados enquanto reféns mais de 26.000, na Alemanha, e 6500, na Áustria. Dado que estas detenções eram destinadas a forçar os judeus a “emigrar” dos territórios alemães, aqueles que asseguraram a partida acabaram por ser libertados.

Para forçar a “emigração” dos judeus, foram também postas em prática diversas outras medidas que se juntaram às já existentes discriminações. A 12 de Novembro, um decreto de Göring excluiu os judeus da vida económica alemã, proibindo-os de administrarem lojas e de colocarem bens e serviços nos mercados. Os judeus deixaram de poder possuir terrenos, edifícios, meios de transporte, bens preciosos e artísticos ou acções, além de deixarem de ter acesso à assistência social e à habitação, bem como ficarem impedidos de frequentar teatros, cinemas ou universidades.

Os nazis ordenaram, entre outras medidas iníquas, que as indemnizações pagas pelas seguradoras alemãs aos proprietários do património destruído na “Noite de Cristal” revertessem para o governo alemão, decidindo que seriam as próprias vítimas a pagar os danos sofridos. Um decreto de Göring sobre as reparações dos judeus de nacionalidade alemã determinou que estes deveriam pagar uma contribuição de um bilião de RM ao Reich. Em Fevereiro de 1939, todos os judeus residentes na Alemanha e na Áustria que “quisessem” partir teriam de contribuir com 0,5% a 10% do valor das suas posses e com um “imposto de fuga”. O pogrom de Novembro de 1938 acelerou assim a chegada de uma nova etapa na política anti-semita nazi: a da “emigração”/expulsão dos judeus dos territórios alemães e, no final desse ano, 30% dos judeus alemães, austríacos, checos, polacos e dos Sudetas já haviam “escolhido” o caminho da “emigração”.

O processo de radicalização anti-semita acelerar-se-ia depois, com a invasão da Polónia. Em 21 de Setembro de 1939, o dirigente SS Reinhard Heydrich, da Gestapo/SD, estabeleceu, relativamente aos judeus polacos, uma distinção entre “medidas de conjunto” e “medidas preliminares” de reagrupamento provisório nas grandes cidades, para “transferência ulterior”. Por seu turno, o chefe SS e de todas as polícias nazis, Heinrich Himmler, ordenou, em 30 de Outubro, a deportação dos judeus da Polónia para o Governo-Geral, sob a autoridade de Hans Frank. Essa política levou à criação de guetos, sendo o de Lodz o primeiro, em Dezembro de 1939.

É também em geral aceite a ideia de que o Holocausto está relacionado com a operação Barbarossa, de guerra total na URSS, iniciada em 22 de Junho de 1941, sobretudo devido à ordem de execução dos comissários soviéticos (Komissarbefehl) e à criação dos Einsatzgruppen, que seguiam os exércitos alemães no leste, responsáveis pelo assassinato de dois milhões de pessoas, na sua maioria judeus. Em 14 de Outubro, foi ordenada pelos nazis a deportação dos judeus do território do Reich para os guetos de leste e, no dia 23, Himmler proibiu a emigração dos judeus dos territórios ocupados pela Alemanha, impedindo assim a fuga dos judeus dos territórios ocupados pela Alemanha. No final de 1941, a “solução final do problema judaico” já não passava pela “emigração”, fecho em guetos e deportações, mas pelo extermínio dos judeus europeus, levado a cabo a céu aberto ou em camiões ou nos centros e campos de extermínio de Chelmno, Belzec, Treblinka, Sobibor, Maidanek e Auschwitz-Birkenau.

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