Não, as pessoas não são como os outros animais

O PÚBLICO tem revelado simpatia pela causa animalista, mas neste caso, a meu ver de leitor diário, ultrapassou todos os limites do que é razoável.

Se postularmos que os homens e os outros animais – ainda que apenas os sencientes – são iguais nos seus direitos, não estaremos a defender a civilização. Antes pelo contrário, estaremos a promover a selvajaria. Os animais, mesmo os neurologicamente mais dotados, não podem controlar por si próprios e de sua livre vontade os instintos que comandam o seu comportamento. Ora, é precisamente de controlo dos instintos que se fala quando se fala de civilização. Não se podendo elevar os animais não humanos a esse nível que só a cultura e a razão permitem, só pode haver igualdade baixando os homens e as mulheres à sua condição animal pura e dura, isto é, a um estado de selvajaria absurdo, mas a que alguns nos querem conduzir.

Vem isto a propósito da edição de 1 de novembro passado do PÚBLICO, onde se dá grande destaque a um caso chocante de maus tratos perpetrados sobre uma cadela. Com direito a chamada à primeira página, honras de editorial e notícia a ocupar duas páginas “nobres”.

O PÚBLICO tem revelado simpatia pela causa animalista, mas neste caso, a meu ver de leitor diário, ultrapassou todos os limites do que é razoável. Comunicou como se fosse o Correio da Manhã dos animais. Só que em vez do aproveitamento de “dramas” humanos com que o tabloide atrai a morbilidade doentia e voyeurista dos seus leitores típicos (despertando o justiceiro radical que muitos deles trazem em si e assim visando enfraquecer a Justiça e o Estado), o PÚBLICO usou o caso de uma cadela que porventura alguns dos seus leitores imaginam poder ser o seu próprio “pet”. Até aí, passe o processo de alienação e de corrosão do sentido crítico que o destaque dado ao caso provoca, tudo menos mal. Cada qual vende como pode. O que realmente custa a aceitar é o editorial “Sou fundamentalista contra a crueldade”.

Sem dúvida que é condenável (e foi condenada em tribunal) a prática de maus tratos contra a cadela e os pobres cachorros com que se encheram as páginas do jornal. A Lei prevê punições para o mau trato animal, e foi cumprida.

O que a Lei não consegue é definir tudo o que se possa considerar mau trato animal. Seria mais fácil se os próprios se pudessem pronunciar, mas, como se sabe, nem entre os humanos mal tratados isso se passa sempre... Para além de que será difícil determinar quais os animais que se podem tratar mal ou bem, seja isso o que for. Que se saiba, os próprios animalistas usam defesas contra ratos, lagartos, melgas e mosquitos, entre muitos outros animais considerados incómodos.

Todavia, a questão aqui não é a Lei, mas o que um jornalista deve ou não deve fazer. Uma das coisas que não deve é mistificar a realidade e distorcê-la a seu bel-prazer. É isso que o editorialista faz. Em primeiro lugar, ao confundir o direito animal (os animais como objeto do direito que regula a relação dos homens com eles) com os direitos dos animais, uma aberração filosófica sem expressão em qualquer código ou normativo válido.

É mais do que sabido que ser sujeito de direitos implica estar de posse da respetiva consciência, o que por sua vez requer a aptidão para distinguir o bem do mal e para assumir deveres, atributos que por sua vez remetem para a capacidade de construir cultura, a qual está reservada aos animais dotados de razão, os homens e as mulheres. Não basta ser senciente, a razão é uma condição indispensável para ser mais do que objeto, sujeito de direitos.

Concordarei com o autor do editorial quando se afirma contra a crueldade, seja ela praticada contra seres humanos ou outros animais. Mas comparar o ato condenável daquele cidadão que maltratou a cadela com o tratamento dado por alguns polícias a um jovem algemado, isso não é aceitável. É cruel e absurdo comparar um jovem, ainda que tenha cometido alguma ilegalidade, a uma cadela e aos seus cachorros. E abre o caminho, como se disse acima, a um ambiente cultural que representa, de facto, o regresso à selvajaria. De que nos aproximamos, por exemplo, à medida que cresce o individualismo narcísico, ao qual não são estranhas as mensagens passadas às crianças, quase sempre com fins comerciais, de forma coberta ou explícita, de que os seus melhores amigos não são outras crianças, mas os seus animais de estimação.

Por infeliz coincidência, na véspera, a nova ministra da Cultura tinha acabado de insultar milhões de portugueses que gostam da Festa de Toiros, chamando-lhes de forma indireta mas clara incivilizados. Desrespeitando assim as liberdades e garantias que a Constituição consagra e mostrando-se incapaz de colocar os seus deveres políticos à frente das suas crenças fundamentalistas, intolerantes e sectárias. As crenças que, como dizia Manuel Alegre, criam os populismos e os Bolsonaros deste mundo. Com a contribuição ativa de quem usa o poder de comunicar para fazer passar tão ameaçadoras crenças.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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