Trump, o Artista

O que podemos chamar de “fenómeno Trump” não é conjuntural, mas sim estrutural. E, com as devidas diferenças, o movimento político que ele iniciou fez escola e está a progredir em várias geografias.

O brilhante filme de Michel Hazanavicius, intitulado O Artista, que recebeu vários prémios, retrata a passagem do cinema mudo para o sonoro e a incapacidade de adaptação à nova era do mais talentoso actor, George Valentin. Recusando-se a aceitar a modernidade e considerando que a introdução do som era apenas uma moda passageira, ele resiste até ao limite, investindo todo o seu dinheiro numa nova película que é um grande fracasso e acaba por arruiná-lo. Enquanto isso, a jovem e bela atriz Peppy Miller, que Valentin havia lançado, adapta-se bem à nova realidade e prospera até se transformar na grande diva de Hollywood.

Para muitos analistas, as eleições intercalares são um momento decisivo no atual processo político norte-americano, havendo sobretudo dois cenários possíveis: primeiro, o Partido Republicano mantém a maioria na Câmara dos Representantes e no Senado, o que significa uma grande vitória de Donald Trump e o estender de uma passadeira vermelha para concretizar toda a parte da sua agenda política que ainda não conseguiu aplicar e para ser reeleito em 2020; segundo, o Partido Democrata consegue ganhar a maioria numa ou nas duas Câmaras do Congresso Federal e pode não só bloquear a Administração Trump como ter aspirações a disputar a presidência daqui a dois anos.

Em rigor, a realidade é um pouco mais complexa do que isto. Por um lado, mesmo no caso de uma vitória total dos Republicanos os checks and balances estão lá e o mais provável é que continuem a funcionar para impedir excessos de concentração de poder. Por outro lado, a história eleitoral nos Estados Unidos demonstra que é muito habitual um partido perder as eleições intercalares e depois ganhar a presidência (e o inverso também acontece), o que se explica por vários fatores: as lógicas e os universos eleitorais são muito diferentes, é comum haver redesenho dos distritos eleitorais (o famoso Gerrymandering), o voto nas intercalares é geralmente usado como uma forma de protesto contra a presidência. Assim, dito de forma direta, é um erro projetar o resultado destas eleições nas presidenciais de 2020.

Mas a questão é ainda mais de fundo. Goste-se ou não de Donald Trump, ele não foi um acidente de percurso. O que podemos chamar de “fenómeno Trump” não é conjuntural, mas sim estrutural. E, com as devidas diferenças, o movimento político que ele iniciou fez escola e está a progredir em várias geografias: da Europa Ocidental e de Leste à América do Sul, passando mesmo em certo sentido por partes da Ásia. Ele inaugurou uma nova forma de fazer política e representa um projeto original que tem ganho muitas das mais recentes eleições em vários países (e, provavelmente, vai continuar a ganhar) tendo por base cinco pilares fundamentais.

Primeiro, uma política de identidade, que surge como contrarreação aos excessos fraturantes da esquerda pós-moderna (a este respeito, vale a pena ler o último livro de Francis Fukuyama). Enquanto os segundos andam entretidos com os direitos das minorias, os casamentos de pessoas do mesmo sexo, a radicalização do movimento “Me Too”, ou um novo dicionário das palavras politicamente corretas, Trump fala do que chama “a verdadeira América”, predominantemente branca, anglo-saxónica e protestantes (os WASP: White, Anglo-Saxon, Protestant), mas aberta a todos os que aceitem a cultura, os valores e o modo de vida americano e se tenham integrado bem na sociedade, mesmo que sejam afro-americanos ou latinos.

Segundo, um puritanismo de direita, que nasce também contra uma certa esquerda puritana e que era dominante até então, traduzido no regresso à pureza dos valores originais dos EUA. Estamos a falar do soberanismo, do nacionalismo, do patriotismo, da honra, do individualismo, da igualdade de dignidade e de direitos, da coragem, da perseverança e da vontade popular (muitas vezes entendida por oposição ao elitismo).

Terceiro, uma narrativa assente no medo e no ressentimento contra o “Outro”, seja ele a elite política e financeira, sejam os que vivem de subsídios estatais e não trabalham, sejam as minorias que não se integraram, sejam os imigrantes ilegais, sejam os estrangeiros, seja o Islão Radical. Sintomaticamente, na sua tomada de posse, o 45º Presidente dos EUA anunciou que “a carnificina americana acaba hoje”, para logo depois culpar o “Outro” por tornar a América numa espécie de país subdesenvolvido.

Quarto, um programa político pós-ideológico, que tanto abrange ideias de direita como de esquerda. À primeira, promete desregulação dos mercados, descida dos impostos, segurança. À segunda, garante que na Segurança Social, no Medicare e no Medicaid não se mexe e mesmo o Obamacare é para ser substituído por um Trumpcare. E a ambas fala de crescimento económico, de criação de emprego, de trazer as empresas de volta à América.

Quinto, a combinação do uso maciço dos Media e das redes sociais para falar de forma constante e direta ao povo, passando por cima das instituições, com um relativismo moral cuja expressão mais saliente é a política do pós-verdade ou dos factos alternativos. Por muito que possa ser gozado pela elite, os tweets e os telefonemas para o Fox & Friends são um método muito eficaz de passar a mensagem diretamente ao povo e levá-lo a acreditar numa determinada realidade, independentemente de ser ou não verdadeira.

O que está a acontecer na política hoje é parecido com a passagem do cinema mudo para o sonoro, mudança retratada em O Artista. Se Donald Trump tivesse entrado no filme de Hazanavicius seria Peppy Miller, enquanto dos seus adversários seriam George Valentin. Ele é a política sonora, os outros ficaram num tempo em que ainda não havia som. Resta esperar que a bela melodia substitua os sons desafinados, conquistando a audiência.

Professor na FCSH-Universidade Nova e Investigador no IPRI

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