As valsas portuguesas que o bacalhau levou à Terra Nova

No legado de um famoso acordeonista de São João da Terra Nova há vários temas inspirados na música tradicional portuguesa que ele aprendeu com um capitão, Manuel da Silva. Um norte-americano tenta agora desvendar os mistérios da origem desta música que fixa na memória local a saga da Frota Branca.

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Richard Simas anda há anos a tentar desvendar o mistério das Portuguese waltzes HELENA FLORES

Esvaziada dos seus navios e mares, a Frota Branca é apenas uma memória. Décadas depois de os portugueses terem abandonado a pesca do bacalhau nos Grandes Bancos do Atlântico Norte, em São João da Terra Nova sobram fotografias, lembranças de homens jogando futebol no cais, saudades de amores fortuitos, alguns topónimos na costa e pouco mais. A cidade desaprendeu aquele ciclo anual que a partir da Primavera, e principalmente durante os ciclones do final de Verão, lhe enchia, até aos anos 70, as ruas de marinheiros de ar rude e roupas coloridas. Mas é possível que, quando o sol regressar, no coreto de Bannerman Park se volte a escutar Portuguese waltzes, música que eterniza, no coração dos locais, o nome de Art Stoyles e um país a quase duas mil milhas náuticas de distância.

Art Stoyles, ele próprio um músico lendário na Terra Nova, fez daquele tema, e de outras músicas que lhe saíam do acordeão diatónico com a indicação “tradicional portuguesa”, uma lenda. Em várias entrevistas que deu antes de morrer, em 2015, este homem que nunca aprendeu a ler explica que ouvira aqueles temas de um antigo capitão português, Manuel da Silva. A história, assim contada, e bem presente na  colectânea gravada pelo músico em 2007, The World Accordion to Art, intrigou um escritor e músico norte-americano, nascido na Califórnia e com raízes nos Açores, que por este dias regressou a Portugal para investigar a origem das valsas portuguesas.

À procura de Manuel da Silva

“É uma música tradicional ainda hoje frequentemente tocada em St. John’s, na Terra Nova. Na maioria das versões, a obra é composta por duas melodias distintas, às vezes ligadas por um tema breve de transição, passando da tonalidade menor para a maior. Com as repetições, a peça tem uma duração de cerca de quatro minutos”, explica Richard Simas, ele próprio músico, clarinetista, numa banda de rua, os Valodys. Ouvimos a música, e se amiúde são claras as referências ao folclore português, são ineludíveis, também, influências de outras culturas onde o compasso ternário da valsa se insinuou pela música mais popular, como a francesa, por exemplo.

Nascido em 1943, dez anos antes de Richard Simas, Stoyles viveu numa das cidades mais cosmopolitas da América do Norte, porto de abrigo de dezenas de frotas bacalhoeiras de todo o mundo. A bordo de muitos navios não faltava quem soubesse cantar ou tocar algum instrumento, e a música, nos dias em que o temporal prendia os homens a bordo, ou ao cais, em terra, era, na sua linguagem universal, um paliativo para as duras jornadas de trabalho. Foi assim também com os portugueses, que guardam, nas várias comunidades piscatórias espalhadas pela costa, um repertório de temas associados a esses tempos, algum dele recolhido por Tiago Pereira, no âmbito do seu projecto A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria, a convite do Museu Marítimo de Ílhavo.

A música popular estava tão disseminada entre os bacalhoeiros que Richard Simas cedo percebeu que Manuel da Silva bem podia ser um capitão natural de Ílhavo, segundo reza a lenda, como, eventualmente, outro dos mais de 400 pescadores com esses dois nomes  dos mais comuns que existem no país – que durante o Estado Novo participaram nas longas campanhas nos Grandes Bancos da Terra Nova e na Gronelândia. Aliás, nessa colectânea de 2007, Stoyles refere-se, com gratidão, a Manuel da Silva como um “marinheiro português” que morrera nos Grandes Bancos, e não a um oficial da marinha mercante.

Para ajudar à incerteza, as conversas com os descendentes do capitão, em Ílhavo, não foram conclusivas. Manuel da Silva morreu em 1960, num acidente de carro e não na pesca do bacalhau, onde a morte foi o destino trágico de um número indeterminado de portugueses. Tinha um particular gosto pela música, e pela guitarra, que tocava com mestria, enquanto amador, mas não deixou referência a qualquer contacto com Stoyles ou outro músico da Terra Nova. O que não quer dizer que não se tenham cruzado.

Paralelamente, no outro lado do Atlântico, o acordeonista deu a entender, numa entrevista dos anos 90, que o seu primeiro contacto com essa música de origem portuguesa se deu em 1955, quando milhares de pescadores subiram encosta acima, pelas ruas da cidade, até à Basílica de São João, para aí depositar uma estatueta de Nossa Senhora de Fátima que ainda hoje ocupa um nicho no principal templo católico de St John's. “Ele contou que um grupo de pescadores portugueses caminhava nas docas em direção ao centro da cidade, liderado por um capitão que tocava a acordeão. Ficou fascinado para sempre por essa música”, explica Simas.

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Imagem da ficha de inscrição de Manuel da Silva no Grémio dos Armadores de Navios da Pesca do Bacalhau, cujo arquivo está disponível online. DR/Museu Maritimo de Ílhavo

Organizado pelo Grémio dos Armadores de Navios da Pesca do Bacalhau, o poderoso braço do regime neste sector, o momento, que coincidiu com a primeira campanha bacalhoeira do segundo navio-hospital Gil Eannes, está ainda bem presente na memória dos mais velhos. Cá como lá, onde teve honras de transmissão televisiva. E foi de uma imponência tal que não espanta que tenha marcado, para sempre, o miúdo de 12 anos que tocava música no porto para sobreviver.

Manuel da Silva esteve nessa procissão. Conheceria Art Stoyles? Conheceu-o nos cinco anos seguintes? Ninguém sabe dizer. Mas talvez o nome de quem “ofereceu” ao acordeonista as valsas portuguesas interesse menos do que aquilo que elas transmitem: essa relação intensa, longa, entre uma ilha no Atlântico Norte e um país que transformou o bacalhau num dos elementos singulares da sua cultura gastronómica e que, para o pescar, mobilizou gerações de pescadores, retirados durante meio ano, ano após ano, às suas famílias. E, se nos ativermos apenas ao período da ditadura, deste contacto entre mais de 20 mil homens e os habitantes de São João da Terra Nova alguma coisa haveria de ficar.

Grand Banks melody;  Spin city, Portuguese waltzes, Just another dream, No more goodbyes. Em comum, estas faixas de The World Accordion to Art têm o facto de, segundo Stoyles, se inspirarem em música tradicional de Portugal, como se lê na ficha técnica. Ouvindo-as, percebemos que, tanto ou mais do que sons de uma qualquer portugalidade (a do folclore alimentado pelo salazarismo, no caso), há por ali algo mais profundo, português também, naquilo que temos de influência celta, e que partilhamos com outras culturas atlânticas. É, de facto, mais música do "mundo na perspectiva de Art", para glosar o título desse disco, do que algo de apenas nosso, deixado no cais.

Da Terra Nova para Portugal

A partir da sua própria história familiar  outro bisavô, também açoriano, costumava enganar turistas contando que fora roubado à mãe por um navio inglês, do qual, à vista da costa, fugira, a nado, até Morro Bay, na Califórnia , Richard Simas cedo entendeu também que entre as estórias e a História pode ir um longo caminho. O que nem é nada mau, e acaba por ser inspirador até, para alguém como este homem de 65 anos que em 2007 deixou a administração do Teatro La Chapelle, que ajudara a fundar 17 anos antes no centro de Montréal, cidade que o acolhe desde o início da década de 80, para se dedicar às suas duas grandes paixões: a escrita e a música.

Através de ambas, o bisneto de um antigo carpinteiro das Lajes do Pico aproximou-se definitivamente das suas origens açorianas e portuguesas, que lhe entraram pelos ouvidos nos ensaios da Banda Filarmónica Portuguesa de Montréal, vizinha da sua capela tornada teatro, e da qual se aproximou por curiosidade, no momento em que deixou aquele projecto. Foi neste ninho de micaelenses que o acolheram de braços abertos, com o seu clarinete, que Richard se reencontrou – desde logo no exotismo das vozes das mulheres falando açoriano enquanto os maridos ensaiavam – com aquilo que, percebeu então, “era parte da sua identidade”, a memória dos avós Simas.

Uma busca sem fim à vista

De Santa Maria, na costa central da California, uma cidadezinha onde hoje existe um Simas Park, Richard guarda as mais intensas memórias da infância: os avós paternos falando português com os amigos, nos cocktails de sábado à tarde, numa casa junto ao mar; o avô Simas tocando modas das ilhas numa viola da terra, instrumento tradicional do arquipélago; ou as festas onde se dançava ao som de Jonhnny Simas and The Blue Notes, a banda de um primo, no DES Club. DES, de Divino Espírito Santo, as mesmas festividades religiosas que, através da banda filarmónica, já em Montréal, o haveriam de de pôr em contacto com a diáspora açoriana na Costa Leste dos EUA, a décima ilha de Onésimo Teotónio de Almeida, escritor que se tornou no seu “pai espiritual”, confessa.

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Os 65 anos, o norte-americano Richard Simas reencontrou-se com as suas raízes portuguesas, através da música. Helena Flores

Depois de alguns trabalhos publicados, e muito por influência de Onésimo, Richard passou a fazer parte dessa diáspora de escritores, e foi o primeiro dos descendentes do bisavô Simas a regressar aos Açores, em 2012, para um encontro literário onde se viu, de repente, sentado ao lado de João de Melo, entre outros nomes que reconhecia dos livros que avidamente passou a ler, para melhorar o seu português, língua que se esforça por divulgar em Montréal, e que fala com relativa facilidade, com o seu inconfundível sotaque americano. Desde então não parou de aprofundar os laços entre os dois lados do Atlântico, numa busca que o levou, por acaso, às valsas portuguesas.

Quanto a estas, como se percebe pelas várias versões, o desafio parece estar longe de ter terminado. “Escutei horas a fio de música folclórica portuguesa e valsas de todos os cantos do mundo e até descobri uma peça na coleção American Folkways que se chama A valsa do emigrante português. Nenhuma dessas músicas se parecia como as melodias das valsas do Art Stoyles. No Youtube encontrei uma versão das Valsas portuguesas por Paddy O’Brien, um irlandês que toca num pub em São Francisco, na Califórnia. Mandei emails a muitos acordeonistas. Finalmente, comecei a pesquisar sobre a história da pesca do bacalhau nos Grandes Bancos e sobre a famosa Frota Branca portuguesa”, descreve.  

A pesquisa levou-o a contactar o Museu Marítimo de Ílhavo e o Instituto Nacional de Etnomusicologia, em Aveiro, onde está a ser desenvolvido um projecto que explora as relações entre a cultura musical de Portugal e dos países atlânticos com os quais estabelecemos contactos mais profundos. Na última sexta-feira, dia em que as valsas foram interpretadas deste lado do mar, num concerto de câmara na Fábrica das Ideias, na Gafanha da Nazaré, apresentou, na Universidade de Aveiro, uma crónica desta sua busca recheada de acordes, mas inacabada, que o inspirou entretanto a escrever um conto infantil, baseado na lenda das Portuguese waltzes.

Nesta obra, ainda não publicada, a ficção abre os seus caminhos, e uma criança busca a interpretação perfeita desta música, com o seu acordeão, nos últimos dias de vida de Art Stoyles. Richard, que começou a explorar, entretanto, outros pontos de contacto entre os pescadores da Frota Branca e os habitantes de São João da Terra Nova, já sabe que talvez nunca chegue à perfeição da verdade, nesta história das valsas. Mas já aceitou como um ganho o facto de, através delas, ter estreitado a distância que o separava de Portugal. 

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