A democracia e os resultados eleitorais “odiosos”

A democracia contém imperfeições e tensões. Para funcionar bem necessita de uma constante reinvenção e readaptação às condições sociais e políticas. É isso que não tem existido.

1. Não há democracia sem povo (“demos”) e sem este ter o poder (“kratos”) de escolher os seus governantes. Por isso, também não há democracia sem eleições livres. Mas os resultados eleitorais podem ser algo “odioso”. Podem ser algo atentatório das nossas convicções e valores profundos e da própria democracia, pelo menos da maneira como a concebemos.

É esse o sentimento de muitos com a eleição de Viktor Orbán na Hungria, de Rodrigo Duterte nas Filipinas, de Donald Trump nos EUA, e, agora, com a eleição de Jair Bolsonaro no Brasil. (Res)sentem essas escolhas como um ultraje. Fazem veementes manifestos de indignação na imprensa à maneira novecentista do “J’accuse” de Emile Zola a propósito do caso Dreyfus (ver “J’accuse”, par Emile Zola, in Le Nouvel Observateur, 12/07/2006).

Todavia, o que estamos a assistir não é a um retrocesso da democracia stricto sensu, enquanto expressão da vontade popular, entendida como a vontade da maioria. O que estamos a assistir é uma crescente tensão entre a democracia e outros princípios fundamentais — direitos das minorias, ou direitos dos migrantes e estrangeiros, etc. —, os quais, até agora, estavam estreitamente associados a esta e eram assumidos como uma natural (auto)limitação da escolha política democrática. Por outras palavras, estavam fora das opções apresentadas como possíveis aos eleitores. Hoje esse consenso estilhaçou.

2. A democracia está ameaçada por iliberalismos, populismos, autoritarismos e fascismos. Formular assim a questão parece simples e inequívoco — afinal, quem não sabe o que é a democracia e que a democracia está ameaçada? Paradoxalmente, o problema é mesmo esse, saber do que estamos exactamente a falar. Há, na teorização da ciência política e na prática político-constitucional dos estados, múltiplos tipos e conceitos de democracia, frequentemente apresentados de forma antagónica.

Assim, temos democracia representativa versus democracia directa; democracia social versus democracia formal; democracia popular versus democracia burguesa; democracia multicultural versus democracia monocultural; democracia liberal versus democracia iliberal; e democracia consensual versus democracia maioritária.

A lista já vai longa e está longe de ser exaustiva. Normalmente, os proponentes de cada versão consideram ser essa a melhor, ou então a mínima forma de democracia aceitável. Neste último caso, a ausência de tais requisitos implicará exclusão do campo democrático. Todavia, apesar de tais pretensões “hegemónicas”, ninguém tem o monopólio desta: importa reconhecer que a democracia pode significar coisas muito variáveis, em diferentes sociedades e contextos históricos.

3. Uma solução para o problema dos múltiplos significados da democracia, poderia ser ir às origens do termo, procurando encontrar resposta na “pureza original” da democracia ateniense, na Antiguidade Clássica grega. Na realidade, isso também não ajuda muito. O conceito moderno de democracia, embora inspirado na democracia grega (ateniense) do século V a.C., emergiu, na realidade, no Ocidente europeu a partir finais do século XVIII.

Pelos parâmetros actuais mais comuns na Europa e Ocidente, a democracia ateniense não seria hoje uma inspiração para qualquer democracia (liberal), nem provavelmente para outras formas de democracia. Engrossaria, com grande probabilidade, o leque dos muitos iliberalismos e autoritarismos que hoje são vistos como ameaçando-a. Seria racista (superioridade helénica sobre os bárbaros, os não helénicos) e xenófoba (do grego “xénos”, estranho e/ou estrangeiro + “phóbos” medo e/ou aversão); violadora dos direitos humanos (os direitos fundamentais do cidadão não existiam); opressiva e patriarcal (as mulheres eram excluídas) e violadora dos direitos das minorias (metecos).

Provavelmente nenhum democrata hoje gostaria de se ver associado a tal forma de democracia. Naturalmente que isso não significa que se deva ler o passado — sobretudo um passado tão longínquo —, à luz dos valores e critérios do presente. Mas olhar o passado tem um mérito: mostra como a complexidade e as contradições da ideia de democracia não devem ser subestimadas.

4. No século XIX, durante os anos 1860, já na fase das democracias modernas, surgiu uma muito citada definição de Abraham Lincoln, Presidente dos EUA na época da guerra civil norte-americana. A democracia foi configurada como sendo “o governo do povo, pelo povo, para o povo” (government of the people, by the people, for the people). (Ver Abraham Lincoln Online, “The Gettysburg Address”). Mas esta definição, apesar da sua boa ressonância, é geradora de equívocos sobre a natureza institucional da democracia moderna.

Tomada à letra — e comparada com a realidade política observável — provavelmente levaria à conclusão radical de que nunca houve nenhuma “verdadeira” democracia, nem nos EUA, nem em parte nenhuma. Desde logo, porque a democracia que ganhou contornos na Europa e Ocidente não foi uma democracia directa como, por exemplo, imaginava ser possível Jean-Jacques Rousseau em finais do século XVIII (Rousseau, para além de se inspirar na Atenas da Antiguidade Clássica grega, imaginou-a a partir de uma comunidade política de pequena dimensão como era Genebra, na Suíça). Abraham Lincoln poderá ter, com a sua definição, sugerido tal ideia democrática aos mais incautos.

Mas nunca houve um puro “governo do povo, pelo povo e pelo povo”, nem era essa a ideia da frase de Lincoln. O que tinha em mente era uma democracia onde uma elite, através de mecanismos de representação política, governava em nome do povo.

5. Por razões histórico-políticas o termo democracia entre nós sugere que o “povo é quem mais ordena” — um icónico slogan da revolução de 25 de Abril de 1974, retirado de uma estrofe da música Grândola Vila Morena de José Afonso. A ideia, aparentemente, ficou consagrada no artigo 3.º da actual Constituição: “A soberania, una e indivisível, reside no povo”. Mas realidade é mais complexa do que a letra da canção (e do que a simples leitura do texto constitucional) sugerem.

O conceito de soberania não é unívoco, é uma abstracção político-jurídica que precisa que lhe tracem o alcance. Politólogos e constitucionalistas — secundados, normalmente, por aqueles que fazem a representação dos eleitores — não entendem a soberania do povo como um poder e uma liberdade tendencialmente irrestritos. Pelo contrário, vêem-na condicionada por meta-princípios os quais vão desde o direito natural aos direitos humanos.

Assim, para os primeiros (os representantes), o facto de a vontade popular ser limitada por convenções de direitos humanos, de direitos das minorias, tratados internacionais, regras de organizações internacionais como a União Europeia, é algo normal e bom. Já para os segundos — os representados —, não é necessariamente assim.

Embora tais princípios e (auto)limitações sejam amplamente aceites pelo establishment que exerce a representação política, não foram profundamente interiorizados, nem são eventualmente partilhados pela generalidade da população. Este ponto crítico das democracias está hoje no cerne dos resultados eleitorais “odiosos”.

6. É simplista reduzir o actual problema democrático e dos resultados das eleições a uma mera questão de fake news, ou de eleitores mal informados e manipulados, como muitos pretendem. Claro que esse é um problema sério das democracias, mas não é o cerne da questão.

A questão mais profunda e complexa centra-se na (re)emergência da tensão entre a representação política e a vontade democrática do cidadão. É verdade que essa tensão é tão antiga quanto a própria democracia, mas adquiriu uma intensidade e contornos novos. No passado teve períodos de crise aguda — por exemplo, na Europa dos anos 1920 e 1930 — e também períodos de uma longa acalmia, como na Europa e Ocidente das décadas finais do século XX. Aí deu a ideia de o problema estar encerrado. Foi uma ilusão.

Neste início do século XXI, entramos, tudo indica, numa nova fase de crise aguda de representação política. Afecta instituições fundamentais da democracia liberal-parlamentar, tal como a conhecíamos até agora: os partidos políticos e os media. Ambos são peças clássicas da democracia representativa, ambos são, cada um à sua maneira, também intermediários entre o cidadão-eleitor e quem exerce o poder.

Mas temos assistido a um pôr em causa do establishment político e mediático. Explica-se por uma combinação complexa de circunstâncias sociais e políticas, onde a tecnologia, especialmente a Internet e as redes sociais, e o aumento da informação acessível cidadão, seja ela rigorosa ou falaciosa, têm um papel maior. Cada vez menos cidadãos aceitam a representação política (e os media), como no passado, como um filtro e um “educador” das “boas” opções políticas.

7. Para concluir, importa insistir nesta ideia. Peças cruciais da democracia-liberal — os partidos e os media do establishment —, habituais intermediários entre o cidadão e o exercício do poder, estão hoje a ser abalados. Entre ambos, políticos e media, existia um largo consenso que sustentava as referidas (auto)limitações da democracia.

Como já notado, isso subtraía as questões de direitos das minorias, de direitos dos migrantes e estrangeiros, de pertença à União Europeia ou à Zona Euro, entre outras, do jogo eleitoral. Os media, ao limitarem ideias políticas desviantes, ajudavam a “fechar” o espaço público. Mas a emergência da sociedade em rede está a destruir esse modelo de democracia do passado. Abriu um espaço público paralelo que permite ultrapassar os media e os seus critérios editoriais. Coloca os políticos do establishment à defesa. O problema mais profundo é que esse consenso de (auto)limitações ligadas à democracia nunca abrangeu a generalidade da população, pelo menos com a amplitude que julgava o establishment.

Na era anterior à sociedade em rede era possível funcionar assim fechando o circuito, ou seja, o espaço público a ideias desviantes. Hoje cada vez menos é possível. Enganam-se os que pensam que a solução é voltar a formas de democracia liberal à maneira das últimas décadas do século XX, onde os cidadãos aceitavam, de forma relativamente passiva, a representação política (e os media) como filtro e “educador” da sua vontade.

A ideia de se poder (auto)limitar a escolha democrática, colocando certos princípios e valores acima da vontade popular, garantidos, essencialmente, por um consenso de elites (representantes), não funciona quando existe um outro espaço público aberto — a Internet e as redes sociais. A democracia contém imperfeições e tensões, desde os seus primórdios na Grécia clássica ao (re)aparecimento no Europa moderna. Para funcionar bem necessita de uma constante reinvenção e readaptação às condições sociais e políticas. É isso que não tem existido.

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