A besta, da Ucrânia ao Brasil

Todos devemos uma vénia. Aos homens e às mulheres que fizeram o mundo um pouco melhor. Que nos fizeram acreditar na liberdade. Na democracia. Que nos devolveram a vida.

As marcas estão lá e Maria não gosta de se ver ao espelho. Nua, olha o corpo que já foi perfeito. Perfeito até ao dia em que foi espancada, violada. Por dias e noites. Homens com riso de hiena e grunhir de rinoceronte, vestidos de fato e gravata, faziam de Maria uma diversão. Maria não falou. Maria não fala. Olha-se ao espelho e vem à memória a vida feliz que teve. Com as marcas na sua maior intimidade, Maria, ainda assim, acha que teve uma vida feliz. Maria não teve uma vida em vão. Maria teve objectivos. Maria viveu com o coração. Maria viveu para os outros. Os outros, os esfarrapados, os rejeitados, os outros, homens e mulheres à procura da dignidade. Maria não fala. Olha-se ao espelho. As marcas estão lá, gravadas a ponta de cigarro. Gravadas a lâmina. Maria passa as mãos pelas cicatrizes e ri baixinho. Valeu a pena enfrentar as bestas. As pobres bestas. Cheiravam a merda. O cheiro vinha da boca. E Maria ri baixinho. Valeu a pena. 

Vestiam de preto como se andassem sempre de funeral em funeral. Gostavam de ofender. Tinham orgasmos ao fazer sofrer. Humilhavam. Mentiam. Torturavam. Eram lacaios e bufos. Traiçoeiros. Rastejantes. Ignorantes. Estendiam o braço em adoração. Comungavam. Faziam faustosos banquetes. Orgias de criminosos. Conspiravam e assassinavam. Depois rezavam. Fomentavam o ódio e a miséria. Cheiravam a sangue. Saqueavam e enriqueciam. Exploravam e prendiam. Faziam guerras para encher os cofres. Obrigavam as crianças a trabalhar. Violavam as mulheres. Chibatavam os negros. E pançudos, fornicavam até salivarem, fazendo dos outros os seus escravos. Quis a força da razão que fossem derrotados. Desapareceram ou aparentemente desapareceram. Uns esconderam-se e outros mascararam o discurso. 

São nomes. Nomes do mundo. Simba, Krista, Rá, Oliver, Viviane, Paulo, Zaila, Alene, Luana, Kalina, Joan, Cateko, Liz, Dimitri, Jin, Aldo, Yara, Rudá, José, Pierre, Nádia, Osuela, Carlota, Osíris, Zola, Xuan, Leonardo, Andrei, Elaine, Bortoli. Pelo mundo, pelos continentes, lutou-se contra a besta. Maria sabia que não estava sozinha. As cicatrizes falam todas as línguas do mundo. Foram milhões aqueles que lutaram como podiam e sabiam. Até ao extremo. Até à loucura. Muitos morreram. Nunca se contabilizou o sangue. Mas os oceanos seriam vermelhos. E a terra também. Todos devemos uma vénia. Aos homens e às mulheres que fizeram o mundo um pouco melhor. Que nos fizeram acreditar na liberdade. Na democracia. Que nos devolveram a vida.  

Foto
Fernando Bizerra Jr./EPA

Sonhou-se que era possível. Mas quem nos fez acreditar depressa deixou de sonhar. Lentamente deixou a terra apodrecer. Não plantou a liberdade. Não plantou a igualdade. Não plantou a fraternidade. A terra apodreceu e a besta começou a germinar. Da gelada Ucrânia ao quente Brasil, a besta cresceu. Continua a crescer. É agora uma floresta negra. Com bruxas e abutres. Sedentos de vingança. Chegam com pés de lã. Mascarados de democratas. Aos poucos irão mostrar ao que vêm. São tolerados por uma direita em delírio, em segredo. São financiados pelo capital, às escondidas. São bajulados pelo clero, às claras. E o povo, faminto, ignorante, enganado, quer continuar a sonhar. Sonhar com uma vida melhor. Só não sabe que daquele lado está o pesadelo.

A criatura do Brasil é medonha. Só um país à beira do suicídio pode escolher o atirador. Talvez a maioria não tenha aprendido a lição. A lição da história. Talvez fosse bom que cada menino e cada menina brasileira começasse a aprender a ler e a escrever na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Talvez fosse bom. Agora, a criatura vai sufocar o pensamento livre. Vai corromper a dignidade. Vai enriquecer quem nunca parou de empobrecer os outros. Vai distribuir armas em vez de arroz. Vai prender e torturar porque simplesmente se é diferente. Ele vai, de peito feito, com os jagunços urbanos a protegerem-lhe as costas e os pecados, ele vai, triunfante, ocupar o Palácio do Planalto. Ele vai, mas não julgue que vai para sempre. Ele quer. Mas não vai. O povão são milhões e nunca a besta venceu a liberdade.

Maria sorri ao espelho. Quantas Marias serão necessárias hoje. Todas são poucas. Maria está velha. Lutou sempre. Ao primeiro chamamento da liberdade e da justiça. Acreditou e acredita. E agora, Maria? A besta anda por aí à solta. E agora, Maria? Agora, é estar lá, olhar a besta de frente e ser mais forte do que ela. A besta é cobarde. Parece forte, mas ainda não é. Basta um simples sopro. Um sopro de humanidade. Maria embacia o espelho e com a ponta do dedo escreve “fascismo nunca mais”.

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