Eles aprendem turco para não serem a geração perdida da guerra na Síria

Parceria entre UE, UNICEF e o Governo turco ambiciona integrar mais de 370 mil crianças sírias no sistema de ensino da Turquia. Em Sanliurfa, junto à fronteira com a Síria, não faltam projectos.

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Wafa (50 anos) com o filho Ahmed (14), de Deir Ezzor EREN AYTUG/COMISSÃO EUROPEIA

A principal sala de aula do Centro de Ensino Público de Haliliye está apinhada, num dia de intenso calor em Sanliurfa, cidade turca a menos de 50 quilómetros da fronteira com a Síria. Os alunos, raparigas e rapazes sírios com idades entre os 14 e os 17 anos, respondem em coro às perguntas do funcionário do ministério da Educação, que os sonda sobre o que já aprenderam a dizer em turco, desde números aos dias da semana. A sessão acaba com uma aluna a cantar acanhadamente uma música patriótica turca.

Não é difícil perceber que a visita de jornalistas europeus ao centro motivou uma preparação cuidada e, em alguns pormenores, descomedida. O objectivo é demonstrar que os fundos europeus, cedidos no âmbito do acordo entre Bruxelas e Ancara para apoiar os refugiados na Turquia (e impedi-los de chegar à Europa), estão a ser convenientemente aplicados na formação das gerações mais novas de deslocados.

Dos 3,5 milhões de refugiados de nacionalidade síria que residem actualmente na Turquia, calcula-se que 1,6 milhões sejam menores. Desses, cerca de 600 mil frequentam actualmente uma escola turca. Mas segundo o ministério da Educação, há mais de 370 mil crianças refugiadas sírias fora do sistema de ensino e, nesse sentido, em maior risco de sucumbir ao trabalho infantil, ao casamento forçado ou à mera discriminação – flagelos comuns entre os que chegam.

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Aulas de turco no centro de educação público de Haliliye EREN AYTUG/COMISSÃO EUROPEIA

“Há que tirar estas crianças das ruas e afastá-las de locais propícios ao trabalho forçado. Para isso precisamos de as identificar, de perceber, junto dos pais, quais as necessidades financeiras da família e de lhes explicar que tipo de soluções e apoios existem”, explica Kamil Kurtul, responsável pela implementação do programa de educação não-formal na representação da UNICEF em Ancara.

A ponte junto à fronteira

A proximidade da região de Sanliurfa à fronteira tornou-a, nos quase oito anos de duração da guerra civil síria, numa das zonas da Turquia com maior população de refugiados – cerca de 500 mil, segundo a UNICEF. Kobani, cercada em 2015 pelos soldados do grupo terrorista Estado Islâmico, está a poucas dezenas de quilómetros. E Urfa – outro nome para Sanliurfa – teve de se adaptar à nova realidade populacional.

No centro de Haliliye está em marcha um dos vários programas financiados pela UE para responder ao aumento da população jovem. Ali e noutros centros semelhantes distribuídos por seis províncias turcas, iniciou-se há cerca de 6 meses o Programa de Aprendizagem Acelerada (ALP, na sigla original), um projecto de ensino não-formal, cuja principal missão é fazer a ponte para a entrada dos jovens no ensino formal.

O plano do Governo, em parceria com a UNICEF, é oferecer-lhes aulas intensivas de língua turca e ensinar-lhes, em dois módulos de oito meses cada um, matéria condensada equivalente ao ensino primário e básico. Uma avaliação positiva garante-lhes um diploma e abre-lhes as portas das escolas turcas.

Ahmed iniciou as aulas há quatro meses e, para já, destaca uma evolução com o idioma. “Pratico o que aprendi aqui com amigos turcos e estou cada vez mais confortável a escrever e a ler. Mesmo que não consiga falar muito bem, já consigo perceber quase todas as palavras”, enaltece o jovem de 14 anos.

Sorridente, este rapaz “com jeito para matemática” que admite “poder vir a ser engenheiro”, confessa ter estado largos anos sem ir à escola, depois da sua cidade natal, Deir Ezzor, “ter sido cercada pelo Daesh”, obrigando a família fugir para Idlib e depois para Sanliurfa. Durante esse interregno trabalhou. “Na Síria estudei durante dois anos mas por causa da guerra tive de parar e já não vou à escola há seis. Aqui trabalhei numa loja – fazia e vendia colares – e mais tarde fui ajudante numa padaria”.

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Mohamed Rashad com os filhos Abdullah e Saad (de dez anos), de Deir Ezzor. Abdullah e Saad estudam turco EREN AYTUG/COMISSÃO EUROPEIA

A mãe, Wafa, diz-se “muito satisfeita” com o programa e “com o efeito positivo que pode ter no futuro dos filhos”. Ainda assim, justifica a opção de Ahmed filho pelo trabalho, em detrimento da escola, por causa das limitações financeiras. “Aqui posso deitar a cabeça na almofada sem ouvir bombas – para mim já é suficiente – mas a situação financeira da minha família é muito limitada. Somos oito pessoas lá em casa, precisamos de toda a ajuda possível”, afirma, lançando um olhar assertivo pela sala e mexendo de vez em quando os braços por dentro do niqab negro.

Laboratório em Urfa

Com poucos meses de implementação do ALP, ainda é cedo para avaliar a sua taxa de sucesso. Um dos responsáveis pelo centro de Haliliye assume-o, mas sublinha que o primeiro e mais relevante objectivo do programa “está a ser cumprido”. O de “envolver os jovens sírios numa qualquer modalidade de ensino”.

Mensagem semelhante é partilhada pelo director do Centro Juvenil de Karakopru. Este edifício moderno, localizado nos arredores de Urfa, com várias salas e campos de jogos, é um dos 83 centros juvenis do país, geridos pelo ministério da Juventude e dos Desportos, onde são leccionadas aulas de língua turca, em regime extracurricular, para crianças sírias que já frequentem escolas turcas. O grande objectivo do programa – baptizado de TLC – é “facilitar a sua integração nas comunidades e escolas turcas”

Abdullah (11 anos) e Saad Rashad (10) frequentam os cursos de turco no centro de Karakopru desde o início do Verão. O pai, Mohamed, afirma com orgulho que “são os dois melhores alunos da turma”. “Na escola também têm aulas de turco, mas aqui a matéria é mais condensada. É uma grande ajuda”, relata, bem-disposto. “Aqui aprendo mais palavras. Os meus professores da escola ficam surpreendidos”, acrescenta Abdullah, timidamente.

A família, também composta por oito pessoas, chegou a Sanliurfa em 2015. Fugiu de Deir Ezzor “quando o Daesh começou a matar pessoas sem justificações ou excepções”. O centro, explica Mohamed, foi “importante para a integração dos filhos” num país “diferente”, mas sobre o qual só tem elogios: “Amo a Síria – nada se compara à nossa casa –, mas já não havia lá vida para nós. Aqui somos muito bem tratados”.

Para além do TLC, a família Rashad beneficia ainda do Programa de Transferências Condicionadas para a Educação (CCTE) – igualmente financiado pela UE, mas também pelos Estados Unidos e Noruega. Implementado pelo ministério da Família desde o início de 2017, em parceria com a UNICEF e o Crescente Vermelho, o projecto consiste na atribuição de um subsídio mensal por cada menor sírio que frequente a escola. “Recebemos 35 liras [5,5 euros] por cada rapaz e 40 [6,2 euros] por rapariga”, detalha Mohamed.

A presença de uma vasta comunidade síria em Sanliurfa converteu esta cidade num laboratório relevante de experimentação de diferentes projectos orientados para o ensino – a seguir a Istambul, é a província com maior número de centros juvenis e de ensino público do país. Alguns dos programas ali em curso precisam de tempo para se poder avaliar o seu verdadeiro impacto junto dos refugiados, é certo, mas o rumo está definido.

“Ter actualmente 600 mil jovens sírios nas escolas turcas já é muito relevante, mas ainda há milhares a precisar e a merecer uma segunda ou terceira oportunidade”, defende Sema Hosta, da UNICEF-Ancara. “Devemos-lhes essa oportunidade”.

O jornalista viajou a convite da Comissão Europeia.

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