Itália? “Estamos no limite, numa situação muito arriscada”

Francesco Franco, economista italiano a viver em Portugal, não vê semelhanças entre o que está a fazer o Governo de Itália e o que fez o português. E mostra preocupação com um cenário em que a subida dos juros comece a criar problemas na banca.

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Francesco Franco: “Os mercados podem não ter confiança na Itália, mas não vão querer perder dinheiro” MIGUEL MANSO

Num cenário em que identifica uma política económica marcada pela incongruência das medidas defendidas pelos partidos que formam o Governo italiano, Francesco Franco vê a Itália numa situação de risco, mas manifesta ainda a esperança de que, quando chegar a hora do debate entre os chefes de Estado, o executivo italiano leve a sério o seu compromisso de manter o país na zona euro.

Os responsáveis do governo italiano dizem que nem "doze cartas até ao Natal" os vão fazer mudar de rumo. Um processo de sanções é inevitável ou há alguma coisa que veja a acontecer que evite o confronto entre o Governo italiano e as autoridades europeias?
A única coisa que pode salvar a situação é o Governo ser realmente coerente com a outra afirmação que estão a fazer e que é a de quererem ficar na zona euro e na União Europeia. Para poder ficar no euro com as regras existentes hoje, têm de ceder em qualquer coisa. Por isso, penso que vai ter de haver um compromisso entre a Europa e Itália, que seja construído de maneira inteligente. Isto parece um pouco optimista demais, mas acredito que neste momento ainda há espaço para fazer isto.

Há espaço para o Governo recuar, é isso?
Sim, em primeiro lugar porque a proposta de orçamento não é bem definida. Tem uns números, sabemos que uma medida vai custar 7000 milhões, outra 3000 milhões, mas são números para os quais não são dados detalhes. Por isso há espaço na discussão parlamentar para mudar a lei. Este é, digamos assim, o cenário construtivo, em que se quer ficar na Europa, se quer fazer um melhor orçamento e procuram-se soluções para isso.

Mas é a Comissão Europeia, com as suas ameaças de penalizações, que vai levar a que isso aconteça?
Não é só a Comissão Europeia. Apesar das características mais políticas que ganhou recentemente, a Comissão continua a ter aqui um papel mais de polícia. E no caso das sanções, a Comissão vai fazer uma proposta aos chefes de Estado dos membros da zona euro. E são eles que no Conselho, com maioria qualificada, podem decidir impor sanções. Agora, se a Itália diz que quer ficar na Europa e cada um dos outros diz não, essa é uma questão que vai ter de ser enfrentada. Não é o Governo italiano contra a burocracia europeia, é o Governo italiano contra os seus parceiros europeus. E, aí, penso que vão ter de encontrar uma maneira de transformar o orçamento que está a ser proposto de uma forma que seja aceite pelos outros.

E os mercados, que papel vão ter?
Um orçamento que não faça sentido do ponto de vista económico terá necessariamente custos no que diz respeito às reacções dos mercados. Mesmo assim, neste momento a Itália tem uma vantagem relativamente ao que acontecia por exemplo em 2011. Nessa altura, a Itália também tinha, além de um défice orçamental, um défice externo e portanto estava mais vulnerável a um ataque rápido dos mercados, porque os investidores podiam de repente dizer: “já não te financio”. Agora, como todo o resto da zona euro, Portugal incluído, a Itália tem um excedente face ao exterior e portanto tem aqui uma folga, tem uma grande poupança privada. Mas não é algo que seja sustentável não só no longo prazo, mas mesmo no médio prazo. É algo que se pode deteriorar muito rapidamente.

Uma coisa que se diz sempre da dívida pública italiana é que, apesar de ser muito grande, é em grande parte detida por italianos. É uma vantagem...
Sim, é uma vantagem nos momentos em que é preciso refinanciar a dívida e os investidores estrangeiros não querem emprestar. Mas, vejamos, 30% da dívida estão nas mãos de estrangeiros, outros 30% tem o banco central e o resto é de investidores italianos, cuja capacidade para comprar mais dívida depende de venderem activos a estrangeiros. É uma vantagem, mas não resolve tudo.

A pressão dos mercados pode levar o Governo a mudar de estratégia?
Sim. O ponto de maior fragilidade está no facto de, nos últimos anos, os bancos italianos terem voltado a comprar dívida italiana. E se a dívida perder valor (e os juros sobem), claramente os balanços dos bancos vão ser afectados.

Os problemas a acontecerem vão ser, primeiro, por via dos bancos, é isso?
É um mecanismo de transmissão muito importante. Os bancos italianos são relativamente sólidos, mas não são resistentes a tudo, têm problemas ainda importantes de crédito malparado. Se houver um choque negativo, do lado dos activos, em que a dívida italiana que detêm perde valor, vão ter problemas no capital. E esse é um mecanismo de transmissão que pode ter efeitos graves na economia, como a quebra da concessão de crédito.

Está preocupado com o que ainda podem fazer as agências de rating?
Se tivessem colocado abaixo de lixo seria muito complicado, porque deixava de ser elegível para as compras que o BCE vai fazer até Dezembro. Portanto diria que até Dezembro ainda há folga. Os mercados podem não ter confiança na Itália, mas não vão querer perder dinheiro. Agora, as agências reagiram negativamente e, apesar de a dívida ainda ser elegível, estamos no limite, numa situação muito arriscada. E já houve um custo importante com a subida dos juros.

Até que nível de juros da dívida é que a Itália pode resistir? Em Portugal, em 2011, falava-se muito do limite dos 7%.
O limite que foi identificado pelo Governo foi o de um spread de 400 pontos base [uma diferença de quatro pontos percentuais face aos juros da dívida alemã]. 

Porquê esse valor?
É baseado em dois factores. Um é o custo que assume em termos de encargos da dívida, que é um impacto um pouco mais lento. E o outro, mais rápido, é o efeito no balanço dos bancos. Os bancos fazem testes de stress e verificam até que nível de juros não têm um problema grave nos seus rácios.

Mas neste momento a Itália já está muito perto desse limite dos 400 pontos...
Pois está, é verdade.

E quando o Governo falou desse limite, disse o que acontece a seguir?
Não se percebeu muito bem. O Governo não é um bloco uniforme. E também é isso que está a criar alguns dos principais problemas. Costuma-se perguntar: “Então mas a Comissão não deixa os partidos cumprirem as promessas eleitorais que fizeram?”. Acho que neste caso temos de perceber que são dois partidos que chegaram de duas coligações separadas nas eleições, com programas completamente diferentes. Um a defender um rendimento mínimo de cidadania. Outro a baixar os impostos, defendendo uma taxa igual para todos. São coisas que realmente não são compatíveis. A soma de todas as promessas eleitorais, querendo nacionalizar tudo e ao mesmo tempo baixar muitos os impostos, é isto que não funciona. É a incongruência entre as várias medidas que faz com que o orçamento não funcione. E depois dentro do Governo há várias almas: há pessoas que são verdadeiramente europeístas, outras que não são. Há pessoas que são muito orientadas para o Estado Social, outras que são muito menos. A única coisa que vejo de positivo nisto, é que estas diferenças podem criar eventualmente um espaço para que a proposta orçamental seja alterada em algum sentido.

Uma ruptura entre os dois partidos é um cenário provável neste momento?
É um cenário possível. Houve um conflito sério em torno da amnistia fiscal, há tensões que estão no ar. Mas Salvini faz tudo isto depois de ter tido nas eleições 17% dos votos e, no fundo, tem sido mais coerente com a sua linha, estando a conquistar muitos novos votos. Já estará neste momento acima dos 30%. É o que tem menos medo das eleições neste momento.

As taxas de juro de Portugal e da Espanha, apesar de terem subido em alguns momentos, subiram de forma moderada. Já não há contágio na Europa periférica?
Não está a acontecer no imediato. Mas essencialmente porque neste momento todos os países da periferia têm excedentes externos e por isso não estão a precisar de financiamento imediato em larga escala. Se um país tiver uma necessidade constante de ir aos mercados buscar dinheiro, fica muito mais sujeito a ter problemas. Foi o que aconteceu na zona euro em 2012. E outro factor que ajuda é que o banco central tem um comportamento completamente diferente, com o seu programa de activos e com o programa OMT [de compra de dívida específica de um país] que pode ser accionado se houver um ataque especulativo nos mercados. Por isso há uma infra-estrutura que é muito mais sólida. Mas obviamente não seria suficiente se acontecesse alguma coisa de realmente grave à Itália.

Aí, haveria certamente contágio.
As ligações que ainda há no sistema financeiro, no comércio são muito fortes tornam impossível que não haja contágio. E há canais de transmissão que são muito difíceis de antecipar ex-ante.

Vê o BCE a mudar a sua estratégia de retirada dos estímulos para ajudar a Itália?
O BCE muda a sua estratégia em função de alterações que afectem o cumprimento do seu mandato de estabilidade de preços. E isso inclui garantir que a política monetária é transmitida em toda a zona euro. Por isso, se houver um problema de confiança de curto prazo dos mercados com os bancos italianos, que não tenha uma justificação estrutural, então sim, pode-se justificar um apoio. Mas tudo isto num cenário em que, por exemplo, há um quadro orçamental plurianual que é consistente com as regras da zona euro. E para activar compras de dívida específicas a Itália, aí seria preciso mesmo um programa condicional.

O Governo defende o seu orçamento, dizendo que é desta forma que se irá colocar a economia italiana a crescer mais. Não há nenhum mérito nas medidas que foram anunciadas? Não podem realmente ajudar a economia a crescer?
No modelo analítico que eu utilizo vejo muito poucos efeitos. São aumentos de despesa corrente que são estruturais. Cria-se um rendimento de cidadania, que ainda não se sabe como vai ser distribuído, mas que vai custar entre 7000 e 9000 milhões de euros. Saber a que parte da população vai chegar, é essencial para saber o efeito final de uma medida deste tipo, mas pode criar incentivos negativos do ponto de vista da procura de trabalho. Outra medida importante é a reforma das pensões, que basicamente é uma contra-reforma em que se elimina o que foi feito anteriormente para tornar o sistema de segurança social sustentável no longo prazo. Na minha opinião, vai ter mais custos para o Estado e vai dar menos dinheiro aos pensionistas. Há a parte dos impostos, com reduções de taxas e aplicação de uma taxa fixa, que também implica uma redução estrutural da receita. Portanto, o que se está a fazer é a aumentar o défice, com uma redução estrutural da receita e um aumento estrutural da despesa. É um aumento do défice para sempre, com retornos no crescimento que são muito difíceis de quantificar e, na melhor das hipóteses, baixos. Para que o rendimento de cidadania tivesse um efeito forte, teriam de fazer um análise micro das pessoas que realmente precisavam deste rendimento e que iam consumir mais. Isso é muito complicado de fazer, não há tempo, e neste momento ainda não se sabe nada sobre isso.

Mas, há um efeito expansionista nestas medidas no curto prazo...
Algumas delas, sim. Dando dinheiro às pessoas, elas podem consumir mais. E é isso que estão à espera que aconteça, mas ao mesmo tempo aumentam o défice de forma estrutural.

A Itália não precisa de um estímulo de curto prazo para pôr a economia a crescer mais?
Neste momento não me parece. A Itália está a crescer pouco há muito, muito tempo. Mas mesmo no documento enviado pelo Governo a Bruxelas, o hiato do produto face ao produto potencial não era negativo. Um estímulo orçamental justifica-se quando o produto está abaixo do potencial e o que se pretende é estimular a economia porque ela pode realmente produzir mais. Aqui, o que temos é um produto potencial que é muito baixo, esse é o problema e é essencialmente um problema de oferta, não de procura. Neste contexto não se justifica um aumento permanente do défice, não é para estabilizar a economia neste caso. Pelo contrário, quando o PIB está acima do potencial, estamos na altura de termos uma meta do défice prudente. E se queriam realmente gastar dinheiro, podiam fazer mais despesa em infra-estruturas, que não são despesas que se vão repetir sempre nos anos seguintes, estimulando a economia pelo lado do investimento. Esta podia ser uma boa maneira de chegar a um compromisso. Um défice de 2,4%, se fosse provocado por medidas que não são estruturais, podia justificar-se. Em Portugal, o défice considerado por Bruxelas foi 0,9%, mas na realidade era 3% porque houve uma capitalização da CGD, que é uma despesa não repetível. A Itália podia tentar fazer uma coisa desse tipo com o investimento e não ia contra as regras de Bruxelas de forma tão violenta.

Em Itália fala-se bastante dos paralelos entre aquilo que foi feito em Portugal pelo Governo e aquilo que se está agora a tentar fazer em Itália. Acha que existe alguma semelhança.
Não me parece. A geringonça portuguesa é um espectro político que vai do Partido Comunista até ao Partido Socialista, é a esquerda, digamos assim. A geringonça italiana é um partido soberanista de direita com um partido populista que tem alguma alma de extrema esquerda e outras [almas] que não. São muito diferentes. E a política económica que seguem reflecte exactamente o facto de estarem em dois pólos completamente diferentes.

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