A identidade é o lugar, não é a língua

A paisagem é o elemento determinante da obra de Cynan Jones, o escritor galês de 43 anos que procura a concisão máxima acerca de um mundo inóspito, interior, a questionar os limites do humano. Uma conversa quando chega a Portugal o segundo romance do autor, Aquilo que Encontei na Praia.

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Andreia Patriarca

Naquela terra, Grzegorz só não estranhava o frio. Ali, "fazia frio. Como na Polónia". E era um frio bom, “revigorante”, a lembrá-lo de casa de onde saíra porque queria que a sua vida não fosse apenas aquilo, a quinta da família que mal dava para sobreviver. Mas há um ano no País de Gales, a trabalhar num matadouro e a partilhar casa com 28 pessoas, imigrantes como ele, Grzegorz ia perdendo o jeito de olhar para a mulher, para o filho pequeno, e agora para o bebé que nascera. Parecia preso a uma condição de pobreza e de subserviência. Ou seja, a vida continuava difícil. Isso também não era estranho, mas, ao contrário daquele frio, não lhe trazia conforto algum. "É o mesmo frio do Norte da Europa", diz Cynan Jones, escritor, criador desta personagem entre o medo, o desespero e a esperança, alguém que vai sussurrando para si “se há uma oportunidade, há que aproveitá-la”.

Grzegorz existe entre sua memória das planícies rurais e a realidade actual de uma terra costeira junto da baía de Cardigan. “Grzegorz acreditara numa visão daquele país que afinal não existia. Enervava-o a monotonia dos edifícios, a fadiga que permeava toda aquela zona, as lojas pardacentas com letreiros avariados. Nada disso batia certo com o que ele imaginara. Havia algo em falta e isso inquietava-o, mas, estranhamente, não conseguia identificar o quê”, lê-se.

O polaco existe ali. Para Cynan Jones a geografia não só importa como é determinante no que escreve. "O lugar determina a história, determina as personagens. Não penso numa história sem o lugar. No fundo, é a paisagem que fornece a história", continua num princípio de conversa onde a primeira lição foi dizer bem o seu nome. 

Cynan lê-se Kénon, mais ou menos. Ele repete, prolongando um "é" que não vemos escrito. É um nome galês, como ele. E Grzegorz é um nome polaco que Cynan Jones não sabe como se pronuncia. Grzegorz existe a par de Holden, um pescador de uma pequena vila também de Cardigan, na costa Oeste de Gales, paisagem que domina e à qual pertence, embora partilhe com o polaco a claustrofobia de uma existência à partida condenada à margem de qualquer sucesso material. Holden – ou Hold, como é sempre chamado – assumiu como missão pessoal zelar pela mulher e o filho pequeno do melhor amigo.

Holdez e Gzergorz são as personagens centrais de Aquilo que Encontrei na Praia, o segundo romance de Cynan Jones, que conhece edição em Portugal sete anos após a original e num momento em que o galês se impõe como um dos jovens autores mais respeitados e inovadores, não apenas no seu país como no universo das letras britânicas. 

Com cinco romances publicados, três dos quais em português – A Cova (Cavalo de Ferro, 2016) e A Baía (Elsinore, 2017), além deste Aquilo Que Encontrei na Praia (Elsinore) –, contos, argumentos para televisão e um livro para crianças, Cynan Jones conquistou a atenção do mundo literário ao vencer a edição de 2017 do BBC National Short Story Award com o conto The Edge of the Shoal, versão reduzida de A Baía escrita para a revista New Yorker. “O engraçado é que esse conto começou por ser um romance com 30 mil palavras. Não resultou e depois trabalhei-o e transformei-o numa novela, um livro mais breve sobre um homem que pega num caiaque e vai deitar as cinzas do pai ao mar. Um dia recebo um telefonema da New Yorker a dizer que publicavam a novela se eu a reduzisse para metade. Tinha quatro dias para o fazer.” Conta isto a rir, numa conversa em Óbidos, onde esteve a participar na mais recente edição do Fólio. Aceitou o desafio. O resultado foi um conto com seis mil palavras que o júri do prémio britânico, formado por nomes como Eimer McBride ou John McGregor, classificou com adjectivos como “perfeito” ou “vibrante”. “Foi um temendo trabalho, o de destilar, levar ao mínimo uma história já de si pensada para estar no limite das palavras.”

O escritor fala desta experiência como a mais “violenta”, literariamente, por que passou. E também porque nesse conto estará a essência de uma escrita que procura transmitir o máximo de emoção no mínimo de palavras e sempre colada à vivência de um lugar. A sua, pessoal, transposta para as personagens que cria.

Os limites do mundo e da escrita

Cynan Jones nasceu numa pequena vila da costa Oeste de Gales, em 1975, e moldou a sua identidade junto ao mar, às escarpas, ao traçado das montanhas a leste, aos ventos fortes, aos dias cálidos da Primavera, às vinhas onde aprendeu a fazer e a reconhecer “um bom vinho”, ao ambiente que o fez querer ser escritor porque foi ali que se fez também grande leitor. "Aos 27 anos decidi apostar tudo nisso. Se não fosse capaz de escrever, desistia, mas não queria ser como aquelas pessoas que mais tarde se culpam por não terem tido coragem de arriscar." Nessa altura, abandonou tudo e passou a ser o habitante de um anexo no jardim da casa da mãe. Aí, escreveu e leu e imitou até que a imitação lhe revelou o que não podia fazer. “Eu queria ser um grande escritor e comecei a escrever como aqueles que eu considerava os grandes escritores”, ri, “com coisas muito intelectuais, com referências à arte, à literatura, idas a museus, cenas muito cosmopolitas. Deitei fora. Aquilo era completamente falso. A minha vida nunca foi aquilo e eu não podia escrever assim.”

Ia escrever sobre o que sabia, a gente e a paisagem de Aberaeron, comunidade balnear de menos de mil e quinhentos habitantes onde abriu uma loja de vinhos e de flores, e por onde gosta de caminhar até ter um livro na cabeça e só então isolar-se e escrever obsessivamente durante dez, quinze dias; apontar tudo. “Depois começa o trabalho duro, interrogar o texto, limar. Isso pode demorar um ano, dois anos”, conta sobre uma escrita conotada com o mundo rural, mas sobretudo colada a um sentido de natureza que confere perspectiva a tudo, em especial às relações humanas.

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Andreia Patriarca

“Na relação com a natureza não há lugar ao que chamamos falha ou culpa. São forças diferentes. Nas relações entre homens, de amizade, de amor, de família, a falha é sentida de outra maneira, o compromisso é outro e quem vive próximo da natureza sente isso de outra forma. São distintos sentidos de responsabilidade.” Por isso, ao sabermos de Holden junto ao mar, por exemplo, parece que estamos a saber mais de Cynan Jones: “Era como estar na fronteira de um dos elementos. Era como um limite, a água, e Hold sentiu que jamais poderia ir viver para longe dali. Era como se, de alguma maneira, lhe fizesse sentir aquele limite, aquela tremenda vastidão que o fazia ter consciência da sua pequenez.”

Com 225 páginas na edição portuguesa, Aquilo que Encontrei na Praia é o livro mais extenso deste escritor que se estreou em 2006 com The Long Dry, que não se revê na actual geração de autores britânicos e que aponta como referências Alexandre Dumas ou John Steinbeck. Num admira o suspense, no outro o olhar sobre o homem na sua relação com o meio. Quando fala do Nobel americano, Jones faz uma pausa. “Acho que se tivesse apenas de escolher os livros de um escritor, escolheria os de Steinbeck.” Outra pausa. “E se fosse só um livro, A Leste do Paraíso.” É mais uma vez o modo de narrar associado a um sentido de lugar, onde “o rural não é apresentado com recurso a lugares comuns”, mas com um profundo conhecimento dessa vivência, indo ao fundo do que chama os limites do que é ser humano. “Ele é um mestre”, conclui. Pelo menos é uma referência quando Cynan Jones também escreve sobre a gente que conhece, dos lugares que conhece para explorar, como em Aquilo que Encontrei na Praia, as diferentes relações de compromisso e responsabilidade impostas pela natureza e pelos homens, recorrendo a duas personagens – talvez as mais trabalhadas de todos os livros que escreveu – que nunca se falaram; são existências distintas, narradas em paralelo, mas marcadas por idêntico sentido de desespero. A elas juntar-se-á outra, outro homem, a achar, como quase todos os homens, que “a vida é um direito” e que, se houver justiça, ela lhes fará o favor de se revelar não os condenando a mais penas. Todos testam os seus limites.

E são todos homens – e mulheres – à margem, num livro onde Cynan ainda anda à procura da contenção que irá marcar as obras seguintes, libertando-se das poucas descrições para investir tudo na emoção de cada movimento. É também um livro comprometido com o seu tempo, um pouco a antecipar o clima social que levaria o Reino Unido ao "Brexit", de que Gales faz parte: a imigração, a xenofobia, a exclusão, a exploração laboral. Grzegorz é o alvo de tudo isso. “Parado à porta daquela casa deprimente, leu, apático, as letras pintadas sem arte alguma no muro rachado ali em frente. ‘Polacos fora’.”

Também é política – e pouco popular – a sua relação com a língua. Natural de um país onde mais de metade da população fala galês, assume que o inglês é a sua primeira língua. É em inglês que pensa e em inglês que escreve. “Sei falar galês, mas nunca de maneira a poder escrever literariamente. Mas não sinto que seja a língua a definir a minha identidade. Faz parte dela como muitas outras coisas. Não me sinto mais ou menos galês por causa da minha relação com a língua”, afirma, ciente de que não colhe muitos aplausos com declarações como esta, mas a sua convicção é de que a identidade é sobretudo o lugar e as circunstâncias em que se vive e menos a língua que se fala”. Ou escreve. Em inglês, admite pelo menos uma vantagem prática: é mais fácil sair desse território que o moldou, e que nos seus livros aparece quase como claustrofóbico, e exportar-se editorialmente.

O mundo de Cynan Jones não é um mundo à parte. Nas palavras e no olhar do escritor tem os traços de universalidade que o tornam um mundo a seguir por nele conter as ansiedades, medos, aspirações de todos os homens. Por menos que isso nos sossegue, ou sobretudo por nos desassossegar tanto.  

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