Os ex-revolucionários são os novos conservadores

Dantes, a esquerda lutava para adquirir direitos; agora, luta pelos direitos adquiridos.

Um país começa a ser perdido para os seus extremos quando a única coisa que o centro político tem para oferecer a determinados anseios da população é uma colecção de nomes feios. Tu és xenófobo se estiveres preocupado com o aumento descontrolado da imigração. Tu és populista se quiseres mais condenações por corrupção. Tu és fascista se desejares que a polícia recorra a meios mais musculados para impor a segurança nas ruas. Este controlo muitíssimo apertado daquilo que se pode dizer ou fazer tem na sua base uma série de sentimentos bem-intencionados, mas que ao longo dos anos derivaram para uma enorme redução daquilo que é politicamente admissível ser discutido no espaço público. Desse estrangulamento nasceram os discursos violentos de Trump e Bolsonaro, e vitórias eleitorais surpreendentes em países como os Estados Unidos, o Brasil ou a Itália.

A razão da vitória destes radicalismos de direita deve-se ao facto de a válvula de esquerda que antigamente controlava a pressão da grande massa dos insatisfeitos fazer agora parte do sistema. Os democratas americanos estavam convencidos que os operários brancos do rust belt jamais os abandonariam, e eles deram a vitória a Trump. Muitos dos brasileiros que beneficiaram das políticas redistributivas do PT para integrar uma nova classe média foram agora a correr votar em Jair Bolsonaro por causa da insegurança e do medo da Venezuela. E mesmo num país como Portugal, o PCP e o Bloco julgam-se os grandes representantes dos portugueses desfavorecidos, mas isso não passa de conversa para épater le prolétariat – o que eles fazem é proteger o funcionalismo público, o lugar no quadro e, quando muito, os descamisados doutorados. A massa dos trabalhadores independentes não é representada por ninguém, porque num país corporativo por excelência quem não está sindicalmente organizado não tem poder de pressão, nem privilégio de representação.

Os antigos revolucionários de inspiração marxista, que lutavam pelas “vítimas da fome” e pelos “famélicos da terra”, agora lutam pela manutenção de um Estado social puro e intocado, invocando o respeito pela Constituição para que a cristaleira não se quebre, nem saia do lugar. Dantes, a esquerda lutava para adquirir direitos; agora, luta pelos direitos adquiridos. Só que, como essa luta exige uma quantidade de dinheiro de que a maior parte dos países já não dispõe, é preciso escolher quem proteger – e protegem-se os do costume. É nesse sentido que a esquerda se tornou profundamente conservadora: ninguém pode tocar no statu quo. É pecado mortal. É inconstitucional. É neoliberal. É até fascista.   

O que esta inflexibilidade política faz é criar um exército de eleitores que se sentem não-representados, e que têm engrossado as fileiras dos candidatos extremistas, um pouco por todo o mundo. Portugal ainda resiste à onda, mas não é por causa dos lindos olhos de António Costa – é mesmo porque não temos violência, nem imigração, e porque à custa dos juros baixos e da conjuntura internacional favorável ainda existe dinheiro para distribuir. No dia em que a torneira se voltar a fechar, com todos os partidos sem planos de futuro, nem projectos reformistas dignos desse nome, o espectro político português não vai ter nada para oferecer aos descontentes. O nosso Bolsonaro de bolso terá então caminho livre. E quando finalmente ele começar a subir nas sondagens, todos abriremos a boca de espanto: como foi isto possível?

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