Antes do apagar das luzes

Acordemos antes que as luzes se apaguem no Brasil. A normalização de Bolsonaro é uma ilusão, como aprendemos com Trump.

Na semana anterior a Bolsonaro ser eleito, atravessei o Atlântico, em direção a São Paulo. Foi em 1987 que pela primeira vez rumei ao Brasil, em plena transição, quando decorriam os trabalhos da constituinte que promulgaria a constituição democrática de 1988. A Constituição do Brasil enuncia com detalhe único os direitos políticos e sociais que deveriam abrir um longo caminho para garantir os “valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos“. Sabiam os autores da constituição que era preciso defender a democracia e as liberdades dos seus inimigos,do regresso à noite da ditadura, da violação dos direitos humanos do coronel Ustra, celebrado como herói por Bolsonaro, responsável direto pela tortura e morte de opositores.

Serão as ameaças à liberdade uma singularidade brasileira ou estará o Brasil a ser contaminado pela mesma peste da política de ódio e mentira que atacou uma boa parte do mundo? Será a consciência de que o futuro do Brasil é o nosso futuro que explica a paixão que tantos democratas, um pouco por todo o lado, dedicaram às eleições brasileiras? Em Portugal, a essa consciência alia-se uma relação íntima que faz da eleição brasileira uma tragédia muito nossa.

Em São Paulo, no abastado Itaim Bibi, bairro de uma classe média que vê uma ameaça nos pobres do Brasil, os restaurantes transbordavam para as ruas. Entre risos e brindes, reinava a despreocupação, a par com a constante consulta das redes sociais: no WhatsApp caíam as fake news que alimentavam o ódio e confirmavam a crença no “mito” salvador do “comunismo”. É esta mesma classe média que, paradoxalmente,valoriza, a sua liberdade individual.

Nos meus interlocutores, nos dias de suspense que se seguiram, sobressaía a consciência aguda de que o império da razão e do pensamento humanista estava em perigo, a urgência de pensar a regressão civilizacional.

Celso Lafer republicou Hannah Arendt: Pensamento, Persuasão e Poder, lembrando que para a filósofa da banalidade do mal “a política determina o destino”, ou seja, são as opções dos homens que moldam o mundo, sem determinismos históricos ou atavismos próprios a um povo (como já se começa a ouvir, em Portugal, em relação à regressão brasileira).

Renato Janine Ribeiro, filósofo, acaba de publicar A Pátria Educadora em Colapso, título de mau presságio, sobre a sua experiência como Ministro da Educação. Para ele, a desigualdade extrema do Brasil, construída durante 500 anos, deve ser a prioridade da política e, como diz no livro, a etapa final do “combate à miséria é capacitar as pessoas pela educação”. Mas para já é preciso, diz angustiado, salvar a liberdade de ensinar do obscurantismo da caça às bruxas da “escola sem partido” e das propostas dos fundamentalistas evangélicos de ensinar o criacionismo e banir a influência do grande pedagogo humanista Paulo Freire.

No MASP e no Instituto Tomi Ohtake, a monumental exposição Histórias Afro-Atlânticas, que marca os 130 anos da abolição da escravatura, que fez do Brasil o segundo maior país negro do Mundo. No Miotaki, uma exposição sobre os anos mais duros da ditadura militar, num diálogo trágico com sentido. Como se fosse urgente afirmar, antes que fosse tarde, os valores da humanidade comum e da liberdade, lembrando quão dolorosa e incompleta foi a sua afirmação...

No dia 24, a 4 dias das eleições, com Renato Janine Ribeiro, o escritor Milton Hatoum e a politóloga Mara Telles, participei no seminário “As democracias perante a emergência da extrema-direita: que resposta?”

Milton Hatoum, autor da A Noite da Espera (sobre os anos da ditadura) relembraria como Bolsonaro era o despertar dos fantasmas e as mazelas que assombram de há muito o Brasil, com referências à literatura brasileira, como a personagem Brás Cubas, o falso liberal, esclavagista e corrupto, do romance de Machado de Assis – referência clara aos falsos liberais de hoje, no Brasil e entre nós, que perante a extrema-direita esquecem os princípios que dizem defender.

Na USP, debatemos os 25 anos dos Acordos de Oslo para a Palestina, revoltados com a afirmação de Bolsonaro de que, como Trump, iria reconhecer Jerusalém como capital de Israel. Bolsonaro foi o candidato dos fundamentalistas evangélicos, que acreditam na profecia  que Jesus só voltará à terra, para o juízo final, quando Israel anexar Jerusalém. A influência do fundamentalismo religioso no Congresso dá dimensão política à demonização dos direitos humanos, do feminismo, do combate à homofobia e da ecologia.

No dia do meu regresso, no longo caminho para Guarulhos, enquanto o taxista me dizia que Haddad tinha sido um grande prefeito de São Paulo, telefonou-me Geraldo Campos, professor universitário, que me relata a invasão da universidade pela polícia para retirar a propaganda eleitoral do PT, e a tentativa de prisão de um professor (denunciado por um aluno), por ter explicado o que era o fascismo, mesmo sem mencionar Bolsonaro. Para Geraldo, tal é sinistro presságio dos tempos que aí vêm.

Contei-lhe o que me tinha dito Pedro Dallari, presidente da Comissão da Verdade: que a ameaça aos direitos humanos era real, mas que o Brasil não cairia facilmente no iliberalismo, pois qualquer violação da Constituição enfrentaria a séria oposição das instituições do Estado de direito (nomeadamente do judicial) e da sociedade civil.

A consciência de que pesa uma ameaça grave sobre todos, nomeadamente os intelectuais humanistas, é angústia comum a todos com quem falei. Portugal é para muitos país refúgio, ilha de democracia e de direitos numa Europa minada pelo mesmo mal que o Brasil: de nós, esperam solidariedade.

Como disse Milton Hatoum, recorrendo a Grande Sertão: Veredas, obra-prima de Guimarães Rosa: “Todo o caminho da gente é resvaloso… tenho medo? Não. Estou dando batalha.”

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