Magano ou o cante com vista sobre a cidade

Com o Alentejo no sangue, dois irmãos e um amigo fizeram um disco onde antigas modas alentejanas são retomadas a duas vozes, guitarra, percussão e contrabaixo. Magano é uma bem-sucedida ousadia.

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Magano: Nuno Ramos, Sofia Ramos e Francisco Brito DR

São raros os discos que, em lugar de letras e fichas, começam por contar ao público uma história de amor. Assim: “O João estava apaixonado. Todos os dias caminhava durante horas para ver a sua amada. Ao voltar para casa de coração cheio e a cantarolar sozinho, parava na taberna mais próxima.” Não é fado, nem prenuncia por desfecho um drama. É uma história verdadeira, passada na alentejana vila de Safara, e foi por ela que nasceu agora um disco, a que foi posto o nome Magano, muito usual no Alentejo. Uma forma de dizer "jovial", "engraçado" ou "brincalhão", para ficarmos pelos significados mais doces.

O João da história é o avô materno dos irmãos Sofia (28 anos) e Nuno Ramos (34), que vieram a ligar-se à música, ela como cantora e fadista, ele como cantor e guitarrista. O Magano surgiu nas vidas deles por causa daquela história. Casou com Rosa e tiveram duas filhas, Fátima e Céu. Como muitos alentejanos desse e doutros tempos, rumaram um dia para norte, na procura de uma vida melhor. E ficaram-se por Almada uns anos, ela a trabalhar como soldador num estaleiro, ela como costureira. A saudade devolveu-os mais tarde ao Alentejo, deixando em Almada as filhas, que ali formaram famílias. E se do casamento entre Céu e Mário nasceram Sofia e Nuno, foi da história antiga dos avós e do ambiente que os rodeava que nasceu o disco; ou melhor, a ideia de trazer para a cidade (outra cidade) já não gente mas canções, dando rosto urbano ao cante antigo.

O cante através dos avós

“Eu lembro-me de que havia muitos convívios em que cantávamos, havia essa partilha da música”, diz Sofia. Nuno acrescenta: “O cante, como tradição oral que é, foi-nos passado muito através dos nossos avós, nos encontros de família. Às vezes, num dia comum, o avô chegava a casa depois de uma noitada, cantava e obrigava-nos a cantar e nós acabávamos por aprender as modas que nos eram passadas.” Esta memória veio a avivar-se mais tarde. Sofia Ramos, entretanto iniciada no fado, esteve em residência artística no Povo, no Cais do Sodré, Lisboa, entre Junho e Setembro de 2014 (editaram-lhe até, em consequência disso, um disco em seu nome e com o selo o Povo, lançado em Fevereiro de 2015). “A ideia de fazer qualquer coisa com o cante alentejano surgiu durante essa residência”, recorda ela. “Quando me lembrei de gravar uma moda, pensei no contrabaixo por ser denso e muito profundo. Faz-me lembrar a capacidade que uma planície alentejana tem de fazer ecoar o som. Achei que ficava bem só duas vozes e um contrabaixo para uma coisa assim carregada. Gravámos o Hino ao Alentejo [também conhecido por Alentejo, Alentejo, o tal que tem esta quadra: “Eu sou devedor à Terra/ A Terra me ‘stá devendo/ A Terra paga-m’em vida/ Eu pago à Terra em morrendo”].

Sofia tinha conhecido Francisco Brito (34 anos, contrabaixista, hoje professor na Escola de Jazz do Hot Clube de Portugal) num espectáculo no Teatro do Bairro. “Ele embarcou neste desafio com muita vontade. Tocámos os dois uma vez no Povo, para apresentar esse tema. E o meu irmão [Nuno Ramos] tinha coisas na gaveta, já tinha feito muitos arranjos de modas alentejanas, em casa, sozinho, e não fazia sentido ela não fazer parte disto. Falei com ele e noutra noite tocámos os três. Foi quando percebemos que aquilo não podia ficar por ali. Até foi o Francisco que o disse, a caminho da zona dos barcos.”

O mais fiéis possível

A ideia de gravar o disco começou, então, a ganhar os primeiros contornos. “Primeiro tínhamos de fazer uma pesquisa das modas que queríamos cantar. Gravámos um EP, quatro temas a partir de uma maqueta, e apresentámo-lo no Teatro Ibérico.” Depois continuaram a tocar, noutros palcos, e as versões foram ganhando apuro. “Como a nossa música foi bem recebida, achámos que merecia ser gravada num disco a sério, com mais do que quatro músicas”, diz Sofia. E foi decisivo ela ter saído vencedora num concurso de fados na Rádio Sim, porque isso levou-a uma reunião na Universal Music. Falou de fado, naturalmente, mas disse que também cantava num projecto chamado Magano e não o queria deixar. Disseram-lhe que isso podia ser um problema, mas pediram-lhe para ouvir. “E foi engraçado porque ouviram, olharam um para o outro, olharam para mim e disseram que sim. Ficaram muito interessados e quiseram trabalhar connosco.”

Com o trabalho de estúdio iniciado (Vale de Lobos e Ponto Zurca), as gravações foram espaçadas, diz Francisco: “Quatro sessões de dois dias cada, num espaço relativamente longo, três meses, de Maio a Julho.” Além de Sofia Ramos (voz e percussão), Nuno Ramos (voz e guitarra) e Francisco Brito (contrabaixo), o disco tem a participação de três músicos convidados, curiosamente três Andrés: André Santos (viola de arame e braguinha), André Gomes (eolina) e André Sousa Machado (bateria e percussões).

Quanto aos temas, treze no total, são todos eles do cancioneiro alentejano, como O meu chapéu, Sarapateado, Chamaste-me extravagante, Promessas ou Pavão lindo pavão. “Podemos pensar em originais mais para a frente, mas aqui decidimos que este era o caminho que fazia sentido”, diz Francisco, com concordância geral. Cantar a duas vozes, uma masculina e outra feminina, é algo invulgar no cante alentejano, onde há tradicionalmente grupos corais de homens e outros de mulheres, não mistos. Mas isso não lhes trouxe desaprovação. “Foi um desafio com que lidámos”, diz Nuno, “visto o cante alentejano ter o coro. Mas tentámos ser o mais fiéis possível, mantendo sempre a métrica e a melodia original, dando-lhe uma roupagem diferente, a duas vozes.” E a audição do disco confirma-o. É como se dos coros passássemos a versões de câmara, onde os instrumentos amparam as vozes numa leveza que não dispensa profundidade, surgindo como distinta ousadia o bom jogo tímbrico das vozes masculina e feminina.

Na família, como no Alentejo, as reacções têm sido positivas, dizem. “A família pode ser suspeita, mas gostam mesmo muito”, diz Sofia. “E no Alentejo temos tido muito apoio. Dizem-nos: ‘Continuem a fazer isto, é bonito, levem o cante para a cidade, não o deixem morrer’.” Pois é isso que farão, hoje e no futuro.

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